domingo, 4 de outubro de 2015

ANEURISMA/DISSECÇÃO DE AORTA



A anatomia vascular da aorta é imperante para a compreensão de sua fragilidade, a qual propicia a ocorrência do distúrbio de calibre. Existem três camadas: a íntima, mais interna, composta por células epiteliais; a média, mais espessa, composta por células de elastina para lhe conferir resistência; e adventícia, mais externa, composta essencialmente por fibras de colágeno, contendo ainda o vasa vasorum, uma rede de microvasos com função de nutrição da aorta como um todo.

A aorta é composta em diversas porções. A ascendente possui 05 cm de comprimento e 03 cm de largura; na base desta porção existem três seios, os seios de Valsalva, que são prolongamentos aórticos mais frágeis que adentram o coração e compõem as cúspides da valva semilunar. A aorta descendente possui 2,5 cm de largura e 20 cm de comprimento; após cruzar o diafragma se torna aorta abdominal – antes torácica – possuindo 20 cm de comprimento e 2,0 cm de largura.

A aorta não está sozinha na caixa torácica e nem no abdomem e para suportar a pressão que surge do coração ela divide a resistência junto uma matriz extracelular composta por elastina e colágeno. Fatores que diminuem a resistência tanto da parede da aorta, como das estruturas em que ela se apoia são a base para a ocorrência dos aneurismas e dissecções.

O aneurisma é uma dilatação patológica, podendo ser fusiforme quando é simétrica ou sacular quando a dilatação ocorre em apenas uma das paredes. O aneurisma pode ser torácico ou abdominal, essa última bem mais comum. No arco aórtico, de onde se originam as artérias braquiocefálicas é muito incomum. Ocorrem cinco vezes mais em homens, com prevalência de 03% das pessoas maiores de 50 anos, e os aneurismas que se iniciam no tórax podem se estender para o abdome ou vice-versa, criando um aneurisma toracoabdominal.

Dentre os fatores de risco mais importantes estão o tabagismo e a síndrome de Marfan, uma doença genética que fragiliza os tecidos conectivos. Acrescenta-se ainda a hipertensão e dislipidemias, que são comuns a todos os tipos de aneurismas. A aterosclerose é o principal fator envolvido nos aneurismas abdominais e torácicos. O aneurisma de aorta infrarrenal é especialmente afetado pela aterosclerose, mas sabe-se que sua ocorrência é multifatorial. Dentre os pacientes não portadores da síndrome de Marfan fatores importantes para aneurisma torácico é a válvula aórtica bicúspide e a síndrome aneurismática familiar. Causas raras para a região torácica estão as dissecções de aorta, aortite infecciosa, arterite de grandes vasos e traumas de aorta.

De alguma forma os fatores de risco se convergem e induzem a produção de enzimas pelo músculo liso que degradam elastina e o colágeno, enfraquecendo as paredes da aorta e as estruturas em quais ela se apoia. Na musculatura lisa da aorta ascendente ocorre a degeneração cística da média, quando a degeneração da elastina evolui para necrose, ocorrendo especialmente nos portadores da síndrome de Marfan.

Daí começa a dilatação e o pesar da chamada lei de Laplace, a qual afirma que quanto maior o raio do compartimento maior a pressão do líquido sobre suas paredes. Dessa forma, após ser iniciado, o aneurisma entra num estado onde quanto maior a fragilidade do vaso, maior sua dilatação e maior é a pressão sobre a parede arterial retroalimentando o problema.


CLÍNICA

O principal sintoma do aneurisma de aorta abdominal é a dor em hipogastro, mas pode ocorrer em tórax ou em região lombar, com ou sem instabilidade hemodinâmica. Existem diversas intensidades e velocidades de surgimento da dor, sendo súbita apenas quando ocorre rompimento de aneurisma, que é incomum e extremamente grave, manifestada como massa pulsante em abdome e hipotensão grave. Fora isso a dor é insidiosa, arrastada até dias, com referência a sensação como se algo estivesse roendo.

No aneurisma torácico também haverá dor torácica ou menos frequente nas costas, mas a compressão de estruturas adjacentes é responsável por diversas complicações, inclusive o tamponamento cardíaco. Podem surgir sibilos, dispneia, rouquidão, disfagia e até pneumonia recorrente, além de repercussões vasculares como hemoptise, insuficiência aórtica e tromboembolismo. Além disso, ocorre ainda hemotórax, hemomediastino, hemoperitôneo e hematêmese. Os sintomas podem simular um quadro de colecistite aguda com dor no quadrante superior direito com irradiação para omoplata e piora ventilatória dependente, nesse caso caracterizando o sinal de Einstein em homenagem ao cientista Albert Einstein, que morreu de causas aneurismáticas.

Se o aneurisma afetar a valva aórtica ocorrerá insuficiência cardíaca e compressão de outras estruturas é motivo para disfonia, insuficiência respiratória, disfagia e síndrome da veia cava superior – dispneia, a pletora facial e edema cervicofacial (mais comuns), tosse, edema dos membros superiores, dor torácica e disfagia.


DIAGNÓSTICO

Aneurisma torácico não pode ser palpado, mas o abdominal sim. O torácico é visualizado com a tomografia computadorizada, sendo também exame de escolha para o rastreamento em pessoas fumantes ou ex fumantes com mais de 65 anos. A radiografia de tórax identifica o aneurisma torácico por desvio da traqueia, alargamento da silhueta do mediastino e do arco aórtico. A ecocardiografia transtorácica consegue visualizar bem a raiz da aorta e por ser usado no rastreamento do pacientes com síndrome de Marfan.

Os aneurismas abdominais podem ser identificados pela tomografia computadorizada, mas também o podem pela ultrassonografia abdominal, que inclusive é muito sensível.


TRATAMENTO

A principal preocupação no aneurisma é sua ruptura. Aneurismas abdominais com largura de 4,0 cm são bem seguros, com chance de ruptura de 0,3% ao ano, se 4,0 a 4,9 cm a chance é de 1,5% e de 5,0 a 5,9 é de 6,5%. Contudo com o rompimento do aneurisma a mortalidade é extremamente alta, chegando a 80% para aqueles que não conseguem chegar ao hospital e 50% para aqueles que são encaminhados ao hospital. Os aneurismas torácicos são mais difíceis de romper, mas as chances aumentam muito para aqueles com mais de 6,0 cm, tendo uma mortalidade total de 76% em 24 horas.

Não há tratamento clínico eficaz, apenas cirúrgico com a introdução de uma prótese tubular ao redor dos locais acometidos. Segundo o Cecil, Goldman e Schafer (2014) aneurismas abdominais com 3,5 a 4,4 cm devem ser monitorizados por exames de imagens de 12/12 meses na intenção de identificar qualquer alargamento. Aneurismas de 4,4 a 5,4 o acompanhamento se faz de 6/6 meses. A partir de 5,5 cm deve ser corrigido, mas caso o pacientes seja portador de síndrome de Marfan ou possua valva aórtica bicúspide a correção é feita com 5,0 centímetros. Se as artérias renais ou mesentéricas forem envolvidas essas devem ser reimplantadas, valendo o mesmo para os casos de necessidade de intervenção por aneurisma na raiz da aorta.

Já a recomendação da Society for Vascular Sugery and north American Chapter of the international Society for Cardiovascular Surgery é de que pacientes com aneurismas de aorta abdominal com diâmetro maior que 4,0 cm assintomático devem ser encaminhados a cirurgia. De qualquer forma a progressão do diâmetro do aneurisma de 0,5 cm em seis meses ou 1 cm em um ano   é motivo para cirurgia independente dos sintomas.


DISSECÇÃO DE AORTA 


A dissecção de aorta é um agravamento do hematoma da parede da aorta, ocorrida quando há rompimento no vasa vasorum ou da íntima. Como as forças de agressão se mantém o hematoma cresce e há rompimento longitudinal da camada média formando um falso lúmen que se comunica com o lúmen verdadeiro.

A dissecção pode ser classificada como tipo A ou proximal, mais comum, quando envolve a aorta ascendente ou essa porção com progressão para descendente, e tipo B ou distal quando envolve a aorta descendente. Isso é muito importante porque a dissecção proximal acarreta risco de rompimento e tamponamento cardíaco maior. 90% dos casos envolvem indivíduos entre 40 e 60 anos e homens são acometidos duas vezes mais que mulheres. Hipertensos são especialmente expostos ao risco. Raras vezes e por motivos desconhecidos ocorre em mulheres jovens no periparto e ainda nos pacientes em geral por iatrogenias na introdução de cateter ou cirurgia cardíaca.

Doenças da aorta com degeneração da elastina é o fator mais importante. Portadores de síndrome de Marfan cursam com degeneração císcita da aorta e sofrem especialmente com essa patologia. A degeneração cística é uma lesão em que há degeneração e fragmentação dos elementos elásticos e fibromusculares da média, criando espaços parecidos com fendas que são preenchidos por material amorfo semelhante a cistos. Como não ocorre necrose, nem cistos verdadeiros a denominação necrose cística não é correta, mas enfim... A dissecção inicia com uma ínfima lesão na camada íntima, expondo a camada média à pressão arterial sistêmica. Como a camada média não é preparada para isso o sangue rasga a conexão entre a média e a íntima, aumentando o hematoma até formar um falso lúmen.

A dor ocorre em quase 100% dos casos, geralmente de início abrupto em diversos locais a depender da localização do aneurisma: retroesternal de início com irradiação para dorso, interescapular, região inferior das costas ou abdominal, podendo migrar na medida em que a disseção aumenta. A dor é descrita como lancinante, lacerante ou em punhalada e muitas vezes pode ser confundida com a dor do IAM.

A hipertensão manifesta-se em 70% dos pacientes, mas a hipotensão também ocorre quando há ruptura da dissecção. A falsa hipotensão pode ocorrer quando há envolvimento de artérias subclávias (nesse caso a compressão da artéria resulta em aferição falsamente mais baixa quando aferido no braço irrigado por esse vaso). Já o envolvimento das artérias braquiocefálicas induz a acidente vascular encefálico e coma. Complicações graves podem ocorrer por compressão das coronárias causando hipóxia e infarto agudo do miocárdio. A obstrução das artérias espinhais culmina em mielite transversa.

Caso haja extensão para aorta abdominal e comprometimento do fluxo para as artérias renais, ocorre insuficiência renal aguda e magnificação da hipertensão por ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, pois já que chega pouco sangue no local, o rim interpreta um estado de hipotensão e ativa sua contra-regulação. O comprometimento das artérias mesentéricas também causam infartos no mesentério, com o paciente se queixando de dor abdominal.


DIAGNÓSTICO

A radiografia de tórax consegue identificar alargamento da silhueta do mediastino em 65% dos casos e por isso não é confiável. Pode observar também derrame pleural à esquerda em pacientes com comprometimento da aorta descendente. Felizmente diversos outros exames tem acurácia adequada. Fala-se da aortografia (que pode não perceber o hematoma intramural), a ressonância magnética, a tomografia de tórax e a ecografia transesofágica, este último sendo o exame indicado quando existe forte suspeita clínica e com isso há necessidade de um exame rápido. Caso a suspeita seja pequena, o exame indicado á e a tomografia de tórax com contraste.


TRATAMENTO

A intensão do tratamento é diminuir as forças que possibilitam a agressão na íntima. Com isso o falso lúmem pararia de avançar. A contração cardíaca deve diminuir até uma pressão sistólica de 100 a 120 ou menos, desde que seja mantida a perfusão renal. O labetolol intravenoso é uma ótima escolha por ser beta e alfa bloqueador. A dose inicial é de 20 mg infundido em dois munitos, depois uma dose de 20 a 80 mg a cada 15 minutos até completar 300 mg. Depois disso mantem-se a infusão de 2 a 8 mg/minuto. Uma alternativa mais acessível é o propranolol, um beta bloqueador puro, na dose de 1 mg em bolus a cada 3 a 5 minutos até alcançar o patamar e bloqueio desejado, depois manter a infusão de 20 mg por hora. Após o labetolol ou propranolol usa-se o nitroprussiato de sódio na dose de 0,5 a 8 microgramas/Kg/ minuto para reduzir a pressão arterial. Caso os betabloqueadores sejam contraindicados pode-se utilizar o bloqueador dos canais de cálcio como o diltiazem intravenoso na dose de 20 mg em dois minutos e manutenção de 5 a 15 mg/hora.

Se a dissecção for tipo A aguda o reparo cirúrgico será necessário pelo risco de tamponamento cardíaco, AVC, insuficiência aórtica grave e é claro ruptura com grave risco de morte.  Se for crônica podem ser tratados clinicamente porque já passaram do período de risco de mortalidade, que é de 1% por hora se não tratada. O tipo B costuma evoluir bem com o tratamento clínico a não ser que tenha complicação em órgão alvo, quando a cirurgia também é necessária.

O seguimento tem o objetivo de manter a pressão arterial sistólica abaixo de 120 mmHg sem interrupções. A diminuição da contratilidade é mantida com metoprolol ou atenolol, ambos de 25 a 200 mg 12/12 horas. Geralmente é introduzido o inibidor da ECA, o lisinopril na dose de 5 a 40 mg ao dia, e se necessário um terceiro, um diurético tiazídico, a hidroclorotiazida na dose de 12,5 a 50 mg ao dia.


REFERÊNCIAS

LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2009.

COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.


Goldman L,  Ausiello D. Cecil: Tratado de Medicina Interna. 22ªEdição. Rio de Janeiro: elsevier, 2005.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ASSISTÊNCIA AO GRANDE QUEIMADO

Regra dos nove.

OBS: o blogger escolheu não incluir novas imagens para esta postagem, por considerar ato apelativo. Sugerimos então pesquisa via internet para mais imagens, pois as mesma são de fácil acesso.



Queimaduras ocorrem por diversos mecanismos: térmicos, químicos, elétricos, radiação, por atritos e outros. As queimaduras térmicas são as mais frequentes e o profissional deve estar atento para os sinais de queimaduras das vias respiratórias, o que demanda imersão em via aérea precoce, principalmente se o transporte para o local especializado irá demorar. Os indicativos clínicos são: queimaduras de face ou região cervical, chumascamento de cílios ou víbrias nasais, rouquidão, expectoração carbonácea, história de explosão e confinamento no local de incêndio.


PRIMEIRO ATENDIMENTO

MEDIDAS IMEDIATAS

Ao se deparar com o queimado o profissional deve logo retirar toda a roupa do paciente para interromper a queimadura, mas as roupas aderidas à pele devem ser retiradas cuidadosamente mediante lavagem com água corrente principalmente se for roupa derivada do plástico, pois esse material tende a se aderir à pele e prolongar a temperatura e o trauma. Produtos químicos devem ser retirados com água corrente em baixo fluxo por ao menos 20 minutos e de maneira nenhuma devem ser adicionado agentes neutralizantes, pois a reação é exotérmica. Lesões de córnea devem ser pesquisados com a aplicação de colírio de fluoresceína. O paciente então deve ser coberto com lençóis limpos, secos e quentes para prevenir a hipotermia.

Se o paciente teve mais de 20% da superfície corporal comprometida deve receber reposição volêmica através de gelcos calibrosos, de preferência n° 16G e nos membros superiores, pois as chances de trombos são maiores nos inferiores. Preferem-se também as áreas de pele íntegra, mas caso a distribuição das queimaduras dificulte o processo deve ser feito assim mesmo. 

Segue então a avaliação do paciente. Na investigação a história de explosão demanda outras investigações, pois o doente pode ter sofrido fraturas. Se foi queimadura em local fechado deve-se sempre suspeitar de lesão por inalação, que muitas vezes traz complicações apenas 24 horas depois. O método minemônico ARDEU ajuda: A de alergias; R de remédio em uso; D de doenças pessoais atuais e pregressas, assim como da família; E de eventos relacionados com a lesão; U de última refeição.

O próximo passo é a avaliação das lesões. A porcentagem de superfície comprometida é observada pela regra dos 9, a qual considera regiões do corpo do adulto em percentuais múltiplos de 9, com exceção das palmas e dedos, que representam 1% assim como a genitália. As proporções são as seguinte: cabeça e pescoço, cada um dos membros superiores, cada coxa, e perna e pé valem 9%. O tronco equivale 18% os dois lados.

O grau de lesão é definido pela profundidade. Primeiro grau se acomete apenas a epiderme, com eritema e sem bolhas. Segundo grau acomete parcialmente a derme, inclui as bolhas ou edema e a coloração é mosqueada ou avermelhada. Pode ser lagrimejante e certamente cursará com dor intensa.  Terceiro grau a derme é acometida ou ainda mais profundamente. A queimadura costuma ser escura e ter a aparência de couro e a pele ainda pode estar mosqueada (manchas escuras semelhantes a moscas) ou esbranquiçada.

Com isso o queimado segundo gravidade por ser:

Leve: queimaduras de 1° grau em qualquer idade; 2° grau com 5% de área queimada em menores de 12 anos ou 10% em maiores. Moderada gravidade: 2° grau de 5ª 15% de área queimada em menores de 12 anos ou 10 a 20% em maiores; qualquer queimadura em mão, pé, face, pescoço, axila ou grande articulação; queimaduras de 3° grau que não envolvam essas partes e de até 5% de área queimada em crianças de até 12 anos ou até 10% em maiores. Grande queimado: queimaduras de 2° grau com mais de 15% de área queimada em menores de 12 anos e maior de 20% além dessa idade; queimaduras de 3° grau com mais de 5% de queimadura em menores de 12 anos e 10% em maiores; 2° ou 3° grau atingindo períneo; 3° grau atingindo mão, pé, pescoço ou axila; qualquer queimadura por corrente elétrica.

Também serão classificados como grande queimado as vítimas que associem lesão inalatória, trauma ósseo, insuficiência renal, hepática ou cardíaca, quadros infecciosos graves, síndrome compartimental, idade menor de 3 anos e maior de 65 ou qualquer evento complicador. 

Os pacientes que devem ser encaminhados para serviços de emergência são com queimaduras de 2° grau com mais de 10% de superfície queimada, qualquer queimadura em mão, pé, face, pescoço, períneo ou grande articulação; qualquer queimadura de 3° grau, queimadura química ou elétrica; lesões por inalação; traumas concomitantes; unidade sem material ou pessoal qualificado.


REANIMAÇÃO

O comprometimento da via aérea se faz por três mecanismos: inalação de fumaça, queimadura direta e intoxicação por monóxido de carbono, este último devendo ser sempre suspeitado em queimaduras ocorridas dentro de recintos fechados. Essa intoxicação é diagnosticada pela medida da carboxihemoglobina, um composto cuja afinidade com a hemoglobina é 240 vezes maior que o oxigênio, justificando que apenas 01 mmHg de CO já eleva sua concentração no sangue a 40%.

Quando os níveis CO estiverem entre 20% e 30% o paciente já apresenta náusea e cefaleia; 30 a 40% há confusão; 40 a 60% o paciente evolui para coma; acima de 60% não há compatibilidade com a vida.  Isso justifica que qualquer suspeita de intoxicação por CO demanda oxigenoterapia a 100% através de máscara unidirecional sem recirculação. Também é necessário a intubação orotraqueal, mas com o cuidado de pré-oxigenar o paciente antes.

A suspeita de lesão direta exige intubação precoce. Como dito antes a inalação provoca repercussões diversas horas após o evento. A inalação é respondida pela via respiratória com um evento inflamatório produtor de secreções e diminuição da luz do trato respiratório inferior. Como a broncoscopia pode ser necessária a intubação deve ser realizada com cânula endotraqueal de grosso calibre. O paciente ainda deve ter seu tronco e cabeça posicionados a 30° para melhorar o retorno venoso e diminuir o edema do pescoço. Se houverem queimaduras de 3° grau no tórax com limitação de movimentos respiratórios é necessária a realização de escarotomia.

Com vistas no acompanhamento da resposta à hidratação deve ser instalada uma sonda vesical de Foley. A hidratação de ser realizada com ringer com lactato, com metade do volume sendo administrada nas primeiras 08 horas após a queimadura e a outra metade nas próximas 16 horas. A diurese é quem vai direcionar a velocidade de hidratação, devendo estar em 0,5 a 1 ml/Kg/hora no adulto e 1 ml/Kg/hora na criança abaixo de 30 Kg. Se o trauma for elétrico a diurese deve ser de 1,5 ml/Kg/h ou até clareamento da urina. No caso das crianças o ringer com lactato deve ter adicionado solução glicosada na proporção de 4:1. A fórmula de Parkland é utilizada nessa fase de hidratação: 2 a 4 ml X Kg de peso X % de superfície queimada. Nos idosos a fórmula contém um volume um pouco menor: 2 a 3 ml X Kg X % superfície queimada.

Como as arritmias cardíacas podem ser o primeiro sinal de desequilíbrio ácido básico e de eletrólitos e um ECG deve ser realizado. A aferição da TA deve ocorrer a cada três horas, assim como a aferição da glicemia.

As nas queimaduras de mãos os membros afetados devem ficar elevados por 24 a 48 horas. Queimaduras em pernas e pé dificultam a deambulação, mas esta deve ser estimulada, elevando o membro quando o paciente se encontrar no leito. A intensão da elevação é reduzir o edema que surgirá nas queimaduras de média ou grande gravidade. Idosos com mais 20%, adultos com mais de 25% e crianças com mais de 15% de área queimada devem usar sonda nasogástrica. Se o paciente perde 10% do seu peso durante a internação também, assim como na necessidade de múltiplas intervenções cirúrgicas. O paciente também deverá realizar profilaxia para o tétano e na criança devem ser pesquisados sinais de maus tratos.

Proceder com analgesia com dipirona 500 mg ou 01 grama EV ou morfina 01 ml (01 ampola= 01 ml ou 10 mg) diluída em 09 ml de SF 0,9%. Daí é administrada 01 mg u 01 ml da solução para cada 10 Kg; em crianças a morfina é a metade dessa dose e a dipirona é com 25 a 50 mg/Kg de peso endovenoso. Prescrever complexo B+ vitamina C, lembrando que o comp. B é fotossensível e deve ser aplicado sob equipo translúcido. Antibióticos só devem ser utilizados se o paciente apresentar temperatura acima de 39° e o agente fica a critério de cada serviço.

Deve-se higienizar a ferida com PvPi degermente ou clorexidina degermante a 2% e sulfadiazina de prata com cobertura antes do curativo oclusivo. Administrar ranitidina 01 amp ou 25 mg de 6/6 ou 8/8 horas para prevenir a úlcera gastrointestinal por estresse; heparina 5.000 ui 24/ 24 horas. Evitar corticoides e antibióticos sem sinais clínicos de infecção.

A escarotomia deve ser realizada através de três incisões: um em cada linha hemiclavicular que se estenderá até pouco abaixo de outra que é realizada perpendicularmente abaixo da linha inferior dos arcos cortais. A escarotomia nos MMSSII é realizada nos lados mediais e laterais. Como esse procedimento só é necessário em queimaduras de 3° grau, no qual as terminações nervosas foram cauterizadas, não há necessidade de analgesia.

Os exames de controle são: hemograma, proteinograma, coagulograma, eletrólitos, ureia, creatinina, urina tipo 1 e glicemia de jejum.

Outras considerações: na queimadura por corrente elétrica deve-se identificar o tipo de corrente, se alternada ou contínua, se houve local de entrada e saída, existência de PCR, monitorização cardíaca por 24 a 48 horas, dosagem de CPK e CK-MB. Nas queimaduras químicas por fluorito com repercussões sistêmicas utilize gluconato de cálcio diluído em SF a 0,9% em infusão endovenosa lenta e acompanhando os níveis de cálcio, aplicar gluconato de cálcio a 2,5% gel sobre o leito das lesões e friccione para alcançar as lesões mais profundas.  Caso não haja descontinuidade da queimadura usa-se o gluconato de cálcio diluído em SF 0,9% de maneira a infundir 0,5 ml da medicação a cada centímetro quadrado, devendo ser aplicado a 0,5 centímetro da borda da lesão em direção ao centro.
A escarotomia deve ser realizada em forma de S estendido quando a queimadura for no braço, tomando-se cuidado de começar na dobra axilar anterior e terminar na face  anterior do epicôndilo medial para assim livrar o trajeto do nervo ulnar. No antebraço se faz a mesma forma indo da extremidade proximal anterior d rádio até a prega flexora distal do punho. Na mão deve-se incisar na região dorsal a altura dos segundo e quarto metatarsos, perfurando entre os espaços interósseos e abrindo a forçosamente a lesão com uma pinça. Nos dedos indicador e médio a incisão deve ocorrer do lado ulnar, e nos polegar, anular e mínimo deve ocorrer do lado radial.

Fasciotomias devem ocorrer na presença de síndrome compartimental, que ocorrem em lesões por queimaduras elétricas, térmicas e politraumatizdos com esmagamento. Se a queimadura atinge tecido adiposo, fáscia e musculo a escarotomia não faz efeito e por isso a fasciotomia deve ser realizada. O trajeto pode ser semelhante à da escarotomia, mas um cuidado especial deve ser dado em perna, começando da face anterior da fíbula e se direcionando à face posterior para livrar o trajeto do nervo fibular.

Deve-se tomar cuidado com as escarotomias desnecessárias, pois o procedimento é uuma grande agressão. Como a queimadura lesiona os músculos, esses respondem com eventos inflamatórios e edema que não é acompanhado pelo superfície do membro acometido, pois a queimadura não permite. A pressão interna aumenta e o sangue não consegue chegar para oxigenar as estruturas. Então se realiza-se medida de oximetria de pulso e a saturação está acima de 90%, não há necessidade da escarotomia. O locais preferenciais para a oximetria são no segundo dedo da mão e do pé, cuja boa perfusão reflete boa oxigenação de todas as estruturas anteriores.

Os ferimentos também devem ser desbridados em centro cirúrgico e sobre analgesia. Os curativos devem ser mantidos oclusivos com uso de antibióticos tópicos a exemplo de sulfadiazina de prata ou de zinco, ou salicilato de sódio ou até colagenases. Curativos aderentes com prata são uma opção mais moderna, e até gazes umedecidas com polivinilpirrolidinaiodo ou clorhexidina. Os curativos devem ser realizados de 12/12 a 36/36 horas.


REFERÊNCIAS

Autores Corporativos do American College of Surgeons. Advanced Trauma Life Support (ATLS) - Manual do Aluno, ed. 8, 2008.

Piccolo, N. S; Serra M. C. V. F; Leonardi, D. F.; Lima Jr, E. M; Novaes, F. N.; Correa, M. D.; Cunha, L. R.; Amaral, C. E. R; Prestes, M. A.; Cunha, S. R.; Piccolo, M. T. Queimaduras: Diagnóstico e Tratamento Inicial. Projeto Diretrizes, Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, abr. 2008. Disponível em: < http://www.projetodiretrizes.org.br/projeto_diretrizes/083.pdf >. (DESTAQUE)

Piccolo, N. S; Serra M. C. V. F; Leonardi, D. F.; Lima Jr, E. M; Novaes, F. N.; Correa, M. D.; Cunha, L. R.; Amaral, C. E. R; Prestes, M. A.; Cunha, S. R.; Piccolo, M. T. Queimaduras – parte II: Tratamento da Lesão. Projeto Diretrizes, Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, abr. 2008. Disponível em: < http://www.projetodiretrizes.org.br/projeto_diretrizes/083a.pdf >. (DESTAQUE)


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

SARCOMA DE KAPOSI


Os pacientes mais relacionados ao surgimento de Sarcoma de Kaposi (SK) são os pacientes infectados pelo HIV com imunodeficiência já instalada. É a neoplasia mais frequente nesse grupo, predominando as formas cutâneas, assim como predominam as lesões cutâneas em pacientes com HIV, chegando a 92% dos infectados.

O SK é um câncer de origem nas células pluripotentes de tecidos conectivos ou de vasos sanguíneos e linfáticos, que se diferenciam em células de musculatura lisa. A hipótese é de que a célula sob estimulação crônica específica se transformaria permanentemente em uma célula muscular. Tipicamente causa tumores em mucosas da boca, nariz e anus, além de acometer pele e órgãos internos. Na maioria dos casos não há sintomas, apenas quando o edema comprime as estruturas próximas à lesão, quando então ocorre dor. Caso se desenvolva nos pulmões causa dispneia e no TGI causa sangramentos. Em geral proporção é de cada mulher para 10 a 15 homens.

Todas as classificações ocorrem mais em homens. SK clássico: 15 homens para cada mulher. Ocorre em homens judeus de origem europeia entre 50 e 70 anos com incidência de 0,02/100.000 habitantes.  Manifestação tegumentar pode ser uma mácula, pápula, nódulo, placa, vegetação e tumorações de origem eritematoviolácea. O crescimento da lesão comprime estruturas adjacentes, obstruindo vias linfáticas e criando linfadenopatias que podem ser dolorosas.

O SK africano assemelha-se com a forma clássica com a diferença de incidir em idade bem menor. A proporção é de 6 meninos para cada menina. Ocorre como nódulos eritematovioláceo em palmas e plantas. Não produz mais sintomas a não ser quando ocorre uma variante que atinge órgãos internos, mas isso é raro. Essa forma nasce de estruturas subdérmicas e infiltra para órgãos, inclusive ossos.

O SK do imunossuprimido surge após 16 meses de terapia imunossupressora. Acometimento de órgãos ocorre em 25% dos casos. Já no SK relacionado à AIDS isso é indefinido. Ocorre em diversos lugares do corpo logo após a instalação da doença. O acometimento de órgãos inclui o fígado, pulmão, TGI e baço. A maioria não terá sintomas, mas pode haver linfoadenopatia, febre de origem indeterminada ou perda de peso. Apesar das pesquisas estarem desatualizadas, sabe-se que 95% dos casos envolvem homossexuais e bissexuais masculinos e menos de 10% em usuários de drogas e hemofílicos. Na realidade ocorre 10 a 20 vezes mais em homens homossexuais e bissexuais em relação a homens infectados por outra via. É também mais comum em mulheres parceiras de homens bissexuais do que parceiras de usuários de drogas injetáveis. É raro em negros americanos, apesar de ser comum em negros de determinadas regiões da África. Os homossexuais tem um pico de incidência de 20 a 40 anos.

O principal fator etiológico é o herpes vírus humano-8 ou HHV-8, cuja infecção precede o surgimento das lesões em 33 meses. A simples infecção não é necessária para o desenvolvimento da doença, pois há uma correlação positiva entre presença de SK e aumentos dos níveis de hormônios sexuais masculinos, a saber dihidroepiandrosterona e testosterona, e hábitos de risco. Em contraposto há inibição das lesões sobre a influencia do HCG por isso há uma tendência a regressão das lesões na mulher grávida.

Teoricamente nos 33 meses em que o HHV-8 infecta o organismo sem a doença ele fica continuamente estimulando células alvo através de IL-1 e IL-6, fatore de necrose tumoral alfa e oncostatina M, que inclusive tem efeito inibitório sobre outras células tumorais. Há também secreção de um produto idêntico ao fator de crescimento de hepatócitos e interferon gama, estes atuando à distância.

As lesões cutâneas costumam ser o primeiro sinal, mas é comum o acometimento de órgãos e linfonodos antes delas. Lesões no TGI estarão em 40% dos pacientes com SK associada a AIDS. Os sangramentos aí seguem a baixa de contagem de células TCD4, podendo causar dor, sangramento e diarreia. Uma a cada três pessoas com SK associada a AIDS irá apresentar candidíase oral e esofágica, mais frequentemente no palato. As lesões na garganta e esôfago podem causar sangramentos. As lesões cutâneas podem ser alguns milímetros a vários centímetros podendo ocorrer em vários pontos e na medida em que crescer coalescem formando grandes placas. Elas começam de coloração cor de rosa e passam para vermelho ou roxo. No negro o tom é marrom ou preto. Em alguns pacientes na periferia da lesão pode haver uma tonalidade verde amarelada, consequente ao extravasamento de hemoglobina dos eritrócitos que são destruídos no local e o depósito de hemossiderina.

As lesões da boca podem ser focais, ou difusas, de vermelho a roxo, podendo envolver palato dure e/ou mole, ser exofítica e ulceradas, podendo sangrar.



CLASSIFICAÇÃO

Nodular, localmente agressivo e generalizado. Em cada forma pode existir seis estágios: mácula, placa, nódulo, lesão exofítica, infiltrativa e linfoadenopatia.

As lesões cutâneas começam como máculas eritematovioláceas, parecidas com um nevo melanocítico comum. Ocorrem bilateralmente, simétricos e geralmente nos MMII. De máculas evoluem para placas e nódulos, crescem em forma de cúpula, esponjosos, podendo agravar para forma de massa infiltrativa e friável. Essa infiltração pode aderir aos tecidos subjacentes, até mesmo ossos. Eles ainda podem surgir pelo fenômeno de Kobner, quando a lesão nasce de uma área lesionada ou enxertada, por exemplo após punção venosa, injeção de BCG, abcessos cutâneos e incisões.

Outras variações são a Sk ecmótico periorbicular, com telangiectasia, queloidal e cavernoso, esse último bastante raro.


DIAGNOSTICO

O padrão ouro é a biopsia, que vai demonstrar, inclusive células fusiformes com pleomorfismo nuclear. O hemograma vai ser inespecífico, mas irá demonstrar enemia, eosinofilia e monocitose. A anemia geralmente é causada pelos sangramentos gastrotintestinais, ou por atividade autoimune hemolítica. A TC abdominal de varredura é o exame de imagem recomendado. Ela irá identificar envolvimento hepatoesplânico e acometimento de vias linfáticas quando ocorrerem.

O estadiamento ocorre pelo sistema da Aids Clinical Trials Group (ACTG) traz a classificação: T de tumor, tendo baixo risco quando o tumor é confinado à pele; I de sistema imune, havendo melhor prognóstico usando as células T CD4 estão acima de 150 células/ml. S de doença sistêmica, havendo pior prognóstico quando há envolvimento de órgãos internos.

A mortalidade geralmente não ocorre. Quando é SK associado a AIDS o paciente pode morrer de 15 a 24 meses após o surgimento das lesões, mas isso mudou drasticamente com a introdução ao tratamento para AIDS.


TRATAMENTO

Para lesões cutâneas a radioterapia com feixe de elétrons é ideal, pois consegue se limitar à derme. Tanto a SK nodular clássico, como o associado à AIDS respondem bem à radioterapia. O acometimento de órgãos internos pode ser tratado com radioterapia sem feixe de elétrons, mas quanto mais extensiva a doença, menos responsiva a esse tratamento é.

Lesões clássicas podem ser tratadas com laser de argônio, ou pode-se lançar mão da simples excisão da lesão.

A vimblastina é utilizada quando a contagem de leucócitos cai abaixo de 4.000. O tratamento básico é com 3,5 a 10 mg EV de vimblastina 1 vez na semana, associado a 0,1 mg da medicação intralesional para o caso de lesões cutâneas resistentes, fazendo preferencia do tratamento com doses menores. As aplicações intralesionais têm boa resposta, mas são muito dolorosas. Outros medicamentos também podem ser utilizados como a vincristina, dacarbazina, doxorubicina, e os agentes de D. Um esquema alternado de vimblastina e vincristina em pacientes com SK associado a AIDS costuma ser bem tolerado, mas a leucopenia e a presença de infecções oportunistas dificultam a continuação da quimioterapia mais pesada. Pacientes que fazem uso de HAART costumam tolerar mais. Alguns pacientes até costumam cursar com regressão do SK com o uso de HAART.

REFERÊNCIAS
PORRO, Adriana Maria; yoshioka, Marcia Cristina Naomi. Manifestações dermatológicas da infecção pelo HIV. Anais Brasileiros de Dermatologia, Rio de Janeiro: v. 75, n. 6, p. 665-691, nov-dez. 2000.

FIGUEIREDO, A. COSTA. Sarcoma de kaposi e infecção pelo vírus herpes do tipo 8. Medicina Cutânea Ibero-Americana, v. 26, p. 197-201. 1997. (DESTAQUE)

COSTA, Eduardo Louzada da; VENACIO, Mariana Andrade; GAMONA, Aloísio. Sarcoma de Kaposi. HU revista, Juiz de Fora, v. 32, n. 3, p. 77-84, jul-set. 2006.


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

FARMACODERMIAS: QUANDO A COCEIRA (PRURIDO) É MAIS ABAIXO E QUANDO ASSUSTA.

FARMACODERMIAS


Farmacodermia é um tipo de reação adversa a drogas. As reações adversas possuem duas classificações gerais: previsíveis, quando se trata dos efeitos colaterais, interação medicamentosa e toxicidade; imprevisíveis, ocorrendo sob interação medicamentosa e hipersensibilidade. Essas reações de hipersensibilidade englobam 15% das reações adversas, ocorrendo como uma resposta alérgica ou não.  Em nosso meio as medicações mais envolvidas são os antibióticos e os antiinflamatórios não hormonais.

As reações à drogas podem suscitar a impressão do envolvimento de IgEs, mas na maioria das vezes não é isso que ocorre. As reações de defesas, no geral, podem ser compreendidas a partir de quatro modelos ilustradas aqui com o uso de medicamentos:

·                    Tipo I: são as reações de hipersensibilidade, que sim, envolvem a interação com IgE. As IgEs específicas localizados na superfície dos mastócitos e basófilos ativam essas células quando entram em contato com o medicamento. Isso culmina na liberação imediata de histamina, prostaglandinas, triptase, leucotrienos e fator ativador de plaquetas, e após 20 a 30 minutos pode ocorrer urticária, edema laríngeo, broncoespasmo, hipotensão e até colapso circulatório.
·                    Tipo II: os medicamentos funcionam como antígenos. Eles se depositam na superfície dos órgãos, sendo os mais importantes aqui a superfície das hemácias e dos rins. Posteriormente a união desses antígenos com anticorpos IgM e IgG desencadeiam um ataque imunológico ao tecido onde se encontram. Isso ocorre com mais frequência com o uso crônico de penicilinas ao causar a nefrite. A metildopa pode se depositar sobre a hemácia e causar anemia hemolítica e a dipirona pode causar agranulocitose.
·                    Tipo III: o raciocínio é o mesmo do anterior, mas a união entre os antígenos e os anticorpos ocorre na corrente sanguínea. Os complexos circulantes se depositam sobre os pequenos vasos dos mais diversos tecidos e induzem resposta imune. Os beta-lactâmicos também estão envolvidos nesse tipo. As manifestações são a febre, erupções cutâneas, urticária, linfoadenopatia e artralgia, que geralmente surgem uma a três semanas após a administração da droga.
·                    Tipo IV: é mediada por linfócito T, que reconhece as moléculas dos medicamentos como antígenos liberando citocinas e recrutando outras células de defesa que vão gerar dano tecidual nos locais onde os “antígenos” estiverem. Algumas drogas são processadas e apresentadas normalmente aos linfócitos, mas há casos onde a sensibilidade é intrínseca ao organismo, fazendo com que a reação ocorra na primeira administração. Esse fenômeno é chamado de interação farmacológica com o organismo imune. A benzilpenicilina é um fármaco passível a esse tipo de reação. A manifestação mais comum é a dermatite de contato com o uso de medicamentos tópicos.

Reações dérmicas correspondem a 5% das reações adversas a medicamentos. Os fatores de risco são número de drogas utilizadas, idade, infecções virais (mononucleose, AIDS), variação genética no metabolismo da droga e acetiladores lentos. Os sintomas são diversos. As erupções máculo papulares podem ser causadas por AINES, quinolonas, beta-lactâmicos, AAS, tiazídicos etc. É a farmacodermia mais frequente, ocorrendo de uma a duas semanas após a introdução do tratamento e algumas vezes após a interrupção. São caracterizados por eritema máculo papuloso (FIGURA 01) em tronco e membros, geralmente não acometendo face. Ocorre em cerca de 5 a 10% dos pacientes em uso de penicilina e geralmente está associada a concomitância com infecções virais. Por exemplo, crianças em uso de penicilina vítimas de mononucleose evoluem com exantemas em torno de 90% dos casos. Os pacientes com AIDS possuem uma propensão maior em apresentar quadro semelhante quando em uso de sulfonamidas.


Exantema é um eritema generalizado de início agudo e fugaz. É dito morbiliforme (FIGURA 02) quando é entremeado por ilhas de pele sã, ou escarlatiniforme quando é difuso e uniforme. 10 a 20% dos exantemas na infância e 50 a 70% nos adultos são causados por drogas. As principais são penicilinas, cefalopsporinas e anticonvulsivastes. 60 a 90% dos pacientes em uso contínuo de aminopenicilinas vão apresentar um exantema eruptivo. O quadro se inicia após 7 a 14 dias de uso da medicação, mas nas reexposições esse período é variavelmente mais curto. Há urticária, a distribuição é simétrica em tronco e membros, ainda podendo ocorrer febre. A melhora costuma ocorrer em duas semanas.



Erupção fixa medicamentosa também se inicia de 7 a 14 dias se manifesta como mácula eritematosa, eritemato-bolhosa ou eritemato purpúrica, podendo haver bolha central. Não há localização padrão e a mancha residual pode se tornar permanente em casos de reexposição.

A utricária e o angioedema podem ser causados por AINES e beta-lactâmicos. Os dois quadros se constituem num mesmo evento, porém em locais e de proporções diferentes. A uticária ocorre na epiderme e por isso a mínima reação se torna visível, ocorrendo melhora em 24 horas. Manifesta-se como urtica, prurido, elevação de relevo e eritema.  O angioedema ocorre na maioria das vezes em mucosas e extremidades na hipoderme, sendo mais intenso e causando extravasamento de plasma, o que determina o edema, com melhora em 72 horas.
O angioedema isolado pode ser causado pelo uso de IECAs pelo acúmulo de bradicinina que se acumula no organismo pelo uso da droga. O quadro pode perdurar por meses sem maiores complicações, mas dentre essas as perigosas incluem urticárias extensas, hipotensão e edema de glote. A explicação para as reações aos AINES é por sua inibição da formação das COX (cicloxigenases), processo no qual inibe a formação de prostaglandinas E2, um mediador da dor, mas também um inibidor da atividade dos mastócitos.

Acredita-se que 20 a 40% dos pacientes com urticária crônica idiopática sejam intolerantes aos AINES. É a segunda farmacodermia mais frequente, acometendo 0,1% da população mundial. Geralmente é fugaz, mas o marco temporal de seis semanas define a urticária aguda da crônica. Entre os doentes 50% irão apresentar recidivar em até um ano e 20% irão evoluir com urticária crônica por mais de 20 anos. Tanto a urticaria como o angioedema é causado pela degranulação de mastócitos, nesse caso ocorrendo principalmente pelo uso de polimixina B, rifampicina, vancomicina e ciprofloxacino.

A dermatite de contato é a farmacordermia mais comum dentre as mediadas pelos linfócitos T, ocorrendo como lesões pápulo vesiculares após o uso de medicações tópicas. Um quadro semelhante também pode ocorrer após exposição à luz solar (fotodermatite) quando em uso de medicações anti-histamínicas tópicas, penicilinas, anestésicos locais, quinolonas, sulfonamidas ou tiazídicos.

As vasculites causadas pelas reações tipo III podem se manifestar como púrpuras em pele e órgãos internos devido à necrose dos vasos sanguíneos. Também podem ser mais graves, ocorrendo bolhas hemorrágicas, nódulos e necrose. A levodopa pode causar a vasculite de Henoch-Scholein, uma púrpura elevada não diminuída coma digitopressão, acompanhada de dor abdominal, mais prevalente em pacientes com menos de vinte anos. As vasculites costumam se manifestar de 7 a 21 dias após introdução da droga, mas a pesquisa deve envolver fármacos utilizados até dois meses antes do início dos sintomas.

Os imunocomplexos também causam a doença do soro, manifestada como febre, erupção máculo papular, urticária, linfoadenopartia ou artralgias. É causada por fármacos de baixo peso molecular como a penicilina, sulfonamidas tiouracil e fenitoína. Os sintomas surgem em até três semanas após a introdução da droga e duram por várias semanas.

A dermatite esfoliativa é um evento raro. O problema se inicia com lacas que se espalham em poucos dias para toda a superfície cutânea, e depois de mais alguns dias descamam em esfoliação fina e amarela. Com a descamação contínua a pele torna-se fina e com menor poder de proteção contra infecções bacterianas, quando então as escamas se tornam espessas e aderentes.


FARMACODERMIAS GRAVES

SSJ/NET
Considera-se o eritema multiforme maior a síndrome de Stevens-Johnson e necrólise epidérmica tóxica (NET). A maioria dos autores classificam essas entidades como um único evento de proporções diferentes, mas a Stevens-Johnson foi descrita pela primeira vez em 1922 numa criança com febre, estomatite erosiva, acometimento ocular grave e lesões cutâneas disseminadas. A NET foi descrita a primeira vez em 1956 num paciente com um deslocamento de pele em grandes retalhos com aspecto semelhante a um grande queimado.



Devemos então considerar a distinção entre as duas através da proporção corporal acometida: para Stevens-Johnson 10% da superfície corporal e para a NET 30%, havendo uma forma intermediária caso a proporção esteja entre esses dois números.  A mortalidade a SSJ é de 5% e para NET é de 30 a 35%. A proporção da incidência entre SSJ/forma de transição/NET é de 3:2:1, e todas tem nas drogas a principal causa: 50% para SSJ e 90 a 95% para a NET, sendo as principais drogas atribuídas os antibióticos, anticonvulsivantes e os AINES. Entre os anticonvulsivantes a carbamazepina é o mais relacionado. Dentre os antibióticos são as sulfonamidas, seguidas de cefalosporinas, tetraciclinas, aminopenicilinas, quinolonas e imidazólicos.

Os pacientes com baixo poder de detoxificação são os mais propensos. Outros fatores de risco são exposição a raios-x, colagenoses, exposição à radiação ultravioleta e infecção pelo HIV. O risco da reação em pacientes infectados pelo HIV em uso de sulfonamidas é 100 vezes maior em relação à população em geral. Tudo ocorre por conta de uma ativação de linfócitos TCD8+ que também são CD95+. Esse último receptor induz a uma sensibilização do linfócito aos queratinócitos deflagrando uma apoptose difusa. A hepiderme acometida então se descola da derme e se parte, ficando sem nutrição e hidratação, seguindo então para a desvitalização.


Tudo começa com febre, cefaleia, coriza, mialgia e artralgia. Passados mais de uma semana começam as lesões cutâneas com uma sensação de ardência e prurido principalmente em dorso e palma das mãos, planta dos pés, cotovelos e joelhos. Nesses locais segue então um eritema que se difunde para todo o corpo, evoluindo para erupções em média em dois a três dias. As máculas surgem em alvo e vão crescendo e confluindo até tomarem grande área. Surgem bolhas com conteúdo hemorrágico que se rompem e deixam para trás áreas erosivas recobertas por crostas vermelho-escuras. Ocorre então o sinal de Nikolski, que é o deslocamento da pele quando se traciona a área adjacente às bolhas.

Os lábios são acometidos em quase todos os pacientes (Figura 7), causando lesões dolorosas que dificultam a alimentação e induzem a sialorreia. As lesões tornam-se sanguinolentas e o processo pode se estender para o nariz até esôfago, podendo acometer até a região anal. Nos olhos a doença causa uma grande agressão, causando simbléfaros (Figura 8) , triquíase, entrópio ciliar, opacidade corneana e cegueira.





Com o acometimento extenso de pele o paciente perde seu equilíbrio hidroeletrolítico. Ele perde de três a quatro litros de água ao dia caso tenha mais de 50% de área corpórea acometida. Com a perda da pele há perda também do isolamento térmico, levando o pacientes a tremores que aumentam a desidratação. Como a pele também funciona como barreira bacteriana a infecção por Staphylococcus e pseudomonas é frequente, justificando ser a sepse a principal causa de óbito nesses pacientes.


Os pacientes referem intensa dor cutânea e prostração, criando uma fasceis típica de SSJ, com aspecto dramático evidente. O envolvimento de órgãos internos é comum e com o acometimento do sistema respiratório 10 a 20% dos pacientes irão necessitar de ventilação mecânica.

DRESS


A reação à drogas com eosinofilia e sintomas sistêmicos ou DRESS é um quadro mais brando apesar de haver risco de morte de 10%. A patologia é composta por uma tríade: erupção cutânea, febre e acometimento sistêmico como adenopatias, nefrite, pneumonite ou cardite. Ao hemograma costuma ocorrer eosinofilia > 1.500/mm3 e linfócitos atípicos. A reação ocorre uma a oito semanas após introdução da droga.

Os medicamentos que mais causam esse problema são as sulfonamidas e os anticonvulsivantes aromáticos. Ocorre 1:1.000 ou 1:10.000 para os pacientes em uso dessas medicações. Os anticonvulsivantes aromáticos, a exemplo da fenitoína, fenobarbital e carbamazepina são metabolizados pelo complexo citocromo P450 em radicais livres que são depurados pela enzima epóxido hidrolase. Naqueles acetiladores lentos, nos locais onde a concentração do citocromo já é fisiologicamente mais baixa, os radicais irão se acumular e se impregnar nos tecidos, em especial no estômago, fígado, intestino e pulmões. A certo ponto uma resposta autoimune via linfócitos T é desencadeada contra tais órgãos com necrose celular tóxica e apoptose.

As manifestações começam com mal estar, faringite e linfoadenopatia cervical. Segue então febre alta (38 a 40°) e em 90% dos pacientes surgem o exantema morbiliforme de início na face e tronco, se espalhando para extremidades. Pode ocorrer edema periorbitário e eritrodermia esfoliativa. Mas atenção, pois o acometimento da hepiderme não reflete o acometimento de órgãos internos.




TRATAMENTO

URTICÁRIA
A  primeira ação é retirar com o uso dos medicamentos (é óbvio!!!) e os sintomas gerais com anti-histamínicos. Há várias opções: maleato de dexclorfeniramina 2 mg 8/8h, hidroxizine 25 mg 12/12h até 6/6 h, loratadina 10 mg ao dia ou desloratadina 05 mg ao dia. Todos via oral e dose adulto. Em casos mais intensos a prometazina intrtamuscular pode ser utilizada 25 a 50 mg dose  adulto  e 1 a 2 mg/Kg dose pediátrica. Em casos de edema e sinais para edema de glote (anafilaxia) a conduta é utilizar adrenalina 0,2 a 0,5 ml no adulto ( 01 ampola possui 01 ml com 01 mg) subcutânea no vasto lateral da coxa, onde a absorção é maior em relação ao deltoide. Essa dose pode ser repetida a cada 05 minutos. Na criança é 0,01 ml /Kg e no máximo 0,3 ml.

O seguimento é realizado com corticoides, de preferência a predinisona 20 mg 12/12h ou 8/8h, não devendo ultrapassar 14 dias.

EXANTEMAS
O tratamento é similar à urticária.

SSJ-NET
Já para os casos com lesões de pele os corticoides não são indicados por retardarem a cicatrização, diminuírem a síntese de colágeno e fragilizarem ainda mais a pele. O primeiro passo também é retirada da medicação deflagradora. A terapêutica de suporte é idêntica a para aqueles grandes queimados, com suporte hidroeletrolítico, suporte calórico, aumento da temperatura do ambiente (30 a 32°C) para amenizar os tremores; anticoagulação e proteção contra úlceras de estresse; controle da dor; controle da ansiedade. Como as infecções por Staphylococcus e pseudomonas são a maior causa de óbito, alguns autores preconizam a profilaxia.

As mucosas devem ser higienizadas e as crostas debridadas, podendo ser utilizadas cremes antibióticos no local (mupirocina é uma boa escolha). O debridamento deve ser estendido para toda a pele desvitalizada(Figura 9), que sem função fisiológica e com a umidade da evaporação corporal aumentada, se transforma num meio de cultura.


Mantém-se esse esquema até que haja a reepitelização geralmente em três semanas.
O uso de imunoglobulinas foi iniciado por sua inibição da ligação dos linfócitos T aos queratrinócitos,mas na prática os resultados não foram satisfatórios.

DRESS: o diagnóstico deve ser confirmado com hemograma para identificar a eosinofilia e os linfíocitos atípicos, transaminases hepáticas que deverão estar > 100 U/L, elevação de bilirrubinas, elevação de ureia e creatinina e exames histopatológicos. O tratamento se baseia em retirada dos medicamentos desencadeantes , suporte hidroeletrolítico e uso de corticóides, de preferência a predinisona 0,5 mg/Kg/dia. Se o paciente estiver utilizando anticonvulsivantes aromáticos utilizar outros de maior segurança como o ácido valpróico.

Ao contrário da SSJ-NET os corticóides podem ser utilizados aqui. Predinisona 40 a 60 mg ao dia. Em casos resistentes pode ser utilizada a pulsoterapia com metilpredinisolona e até plasmaférese.

REFERÊNCIAS
FERNANDES, Nurimas C.; PEREIRA, Fabíola de Souze e Mello; MACEIRA, Juan Piñeiro; CUZZI, Tullia; DRESCH, Taís Feliz Leitão Rosa; ARAÚJO, Paula Pereira. Eritrodermia: estudo clínico-laboratorial e histopatológico de 170 casos. Anais Brasileiros de Dermatologia, v. 83, n. 6, Rio de Janeiro, Nov/Dec. 2008.

ENSINA, Luis Feilipe; FERNANDES, Fátima Rodrigues; GESU, Giovanni di; MALAMAN, Maria Fernanda; CHAVARRIA, Maria Letícia; BERND, Luiz Antonio Guerra. Reações de hipersensibilidade a medicamentos parte I in: Guia prático de alergia e imunologia. Revista Brasileira Alergia e imunologia, v. 32, n. 2. 2009.

OLIVEIRA, Felipe Ladeira de; SILVEIRA, Laísa Kelmer Cortês de Barros; NERY, Jo´se Augusto da Costa. Síndrome DRESS: emergência e desafio diagnóstico. Grupo Editorial Moreira Júnior. Instituto de Dermatologia Professor Rubem David Azulay. Disponível em: http://www.moreirajr.com.br/revistas.asp?fase=r003&id_materia=5329

ENSINA, Luis Feilipe; FERNANDES, Fátima Rodrigues; GESU, Giovanni di; MALAMAN, Maria Fernanda; CHAVARRIA, Maria Letícia; BERND, Luiz Antonio Guerra. Reações de hipersensibilidade a medicamentos parte III in: Guia prático de alergia e imunologia. Revista Brasileira Alergia e imunologia, v. 32, n. 5. 2009 (DESTAQUE).


Clínica médica: alergia e imunologia clinica, doenças da pele e doenças infecciosas. v. 7, Barueri, SP: Manole, 2009 (DESTAQUE).

domingo, 3 de maio de 2015

ESCLEROSE MÚLTIPLA


É uma doença autoimune que por hiperativação imunológica cursa com ataque contra a mielina do SNC por conta da ativação de leucócitos presentes no LCR ou devido a um distúrbio da seletividade da barreira hematoencefálica (BHE), permitindo que células de defesa reagentes contra mielina migrem para o cérebro e/ou medula. No Brasil sabe-se que a prevalência em Botucatu-SP é de 17/100.000 e em Belo Horizonte é de 18/100.000. As mulheres são duas vezes mais acometidas em relação aos homens e é raro a incidência em crianças e adultos acima de 50 anos. Mulheres no puerpério são 3 vezes mais acometidas em relação ao período gestacional, não havendo relação com a anestesia raquimedular. Pessoas com pouca exposição ao sol, quando a deficiência de vitamina D desorganiza o sistema imune e moradores onde a condição climática de muita umidade favoreça o ao aparecimento de infecções respiratórias também sofrem com maior propensão à esclerose múltipla (EM). Tudo então converge com uma propensão genética, tendo associação positiva o gene DQB1.

A sensibilização contra a mielina no SNC pode vir de antes ou depois da BHE. De dentro vem das células gliais, de fora advém quando estados imunes hiper-reativos constroem citocinas que aderem à superfície da BHE. Com isso há expressão de moléculas de adesão celular tais como ICAM, VICAM, antígeno tardio tipo 4, L-selectina e P-selectina, permitindo o recrutamento de células de defesa. Com o tempo essas células irão migrar para dentro do SNC onde serão sensibilizados pelas citocinas contra mielina mantidas nesse espaço, promovendo destruição da substância branca e seus sintomas.

Proteínas da bainha de mielina e da membrana dos oligonendrócitos irão induzir secreção de TNF-alfa e fator de crescimento transformador beta pelos astrócitos e pela micróglia, que estimularão o ataque inicialmente por linfíócitos T CD4 e posteriormente T CD8, nesse meio tempo com recrutamento de macrófagos a continuar a lesão da bainha, formando placas de consistência mais endurecida em relação à substância branca (esclerose). Com o passar do tempo novos antígenos vão sendo apresentados pelas células dendríticas perpetuando a reação inflamatória, como se vê nos casos mais incomuns e agressivos da EM. Na medida em que os linfócitos vão agredindo as células da micróglia, este vai liberando interleucina 12 e 23, que induz os linfócitos T a secretar interferon gama e interleucina 17, com efeito de recrutamento de novos macrófagos para piorar o quadro já instalado.

Enquanto a mielina é destruída os canais de cálcio também são e isso induz entrada desse íon na célula causando destruição mitocondrial e do citoesqueleto com consequências fatais não só para o axônio, mas para o neurônio em si.

Os locais mais acometidos são ao redor dos ventrículos laterais, no nervo e quiasma óptico, no tronco cerebral, cerebelo e medula. As placas demonstram redução dos oligodendrócitos e preservação parcial dos axônios. Com o passar do tempo o infiltrado inflamatório vai diminuindo e as lesões regridem parcialmente, porém a organização dos neurônios nunca mais será a mesma, assim como o número de axônios vai diminuindo gradativamente.


SINTOMAS E DIAGNÓSTICO CLÍNICO

Robins afirma que o mais comum para sintoma inicial na forma monossintomática é o comprometimento visual unilateral de evolução em alguns dias devido ao ataque ao nervo óptico. O ACL diz afirma sobre a apresentação polissintomática na maioria dos casos, iniciando com paresia de um ou mais membros em até 50% dos pacientes, seguido de parestesia em 45%, neurite óptica em 20% e marcha atáxica em 15%. O acometimento do tronco produz ataxia, nistagmo e oftalmoplegia, e da medula produz comprometimento motor e sensitivo dos membros inferiores e superiores, além de espasticidade e perda do controle voluntário da micção. A forma monossintomática inicial abarca 31% dos casos. Existem diversas formas da doença, podendo ser progressiva ou não, mas sabe-se que nas progressivas a apresentação de paraparesia surge em quase totalidade dos casos, geralmente surgindo após exercício físico ou aumento da temperatura corporal.

Mas antes de entender as formas de EM é necessário definir o surto de esclerose, este sendo o surgimento de sintomas subjetivos ou evidentes de duração mínima de 24 horas, sem presença de febre ou mesmo aumento de temperatura corporal, e o contrário, a remissão, deve ocorrer pela ausência de sintomas por ao menos um mês.

Os sintomas são assimétricos na maioria das vezes porque a forma remitente recorrente é a mais frequente. Nas formas progressivas eles são simétricos e de início nos membros inferiores, podendo haver comprometimento de esfíncteres. Há aumento dos reflexos miotáticos e sinal de Babinsk, que quando presente sinaliza lesão corticoespinal. A marcha muda com a evolução: no início a claudicação ocorre por perda de força muscular nos membros inferiores após andar alguns minutos, mas com a longa duração da doença ocorre o contrário, espasticidade provando a claudicação e fadiga.

As manifestações sensitivas podem ocorrer em sintomas discretos ou dores intensas com duração de transitória até meses. Nas lesões cervicais os reflexos miotáticos são abolidos e as dores, quando ocorrem, são intensas e em faixa na direção dos dermátomos. A perda da sensação vibratória ocorre por agressão ao fascículo grácil, que transmite essa sensação vinda dos MMII. Se a lesão quando ocorre no funículo posterior e é bilateral o paciente apresenta sinal de Romberg e marcha talonante. Lesões nessa área também causam movimentos involuntários nos MMSS chamados de pseudoatetose, que se exacerbam durante um movimento de oclusão ocular.

Os sintomas decorrentes da lesão cerebelar são as mais frequentes se considerado todo o curso da doença. Se ocorrerem nos surtos iniciais significam mau prognóstico. Causa tremor nos membros inferiores, marcha atáxica e disfunções da escrita e fala. Os distúrbios do aparelho visual podem ser motores e sensitivos. Os sensitivos decorrem da neurite óptica, descrito adiante. A oftalmoplegia internuclear é quase patognomônica da doença, manifestada quando o paciente realiza o movimento ocular lateral ocorrendo paresia do reto medial do olho aduzido (o olho acometido não vai para o canto externo) e nistagmo do olho abduzido.

Lesões no hipotálamo, tronco cerebral e medula espinhal causam disfunção autonômica, podendo ocorrer síndrome de Horner, ou apenas a hiperidrose ou sudorese unilateral, arritmias cardíacas, hipertermia, disfunção sexual, perda do controle de esfíncteres e descontrole da secreção do ACTH. A urgência ou incontinência urinária é o sintoma autonômico mais frequente, ocorrendo por disfunção do detrusor que dificulta o enchimento da bexiga. O paciente então cursa com polaciúria. Disfunção sexual também ocorre como perda da libido, disfunção erétil e diminuição da lubrificação vaginal.

Por último a fadiga ocorre em até 80% dos indivíduos independente do estado da doença, causando impacto na qualidade de vida muitas vezes desproporcional às lesões existentes na substância branca.

Pronto! Esses são os sintomas que ocorrem durante o surto, contudo a periodicidade dos surtos e remissões possibilitam a classificação dos pacientes com EM: remitente-recorrente, secundariamente progressiva, primariamente progressiva e Progressiva recorrente.

1-                 Remitente recorrente: é a forma usual de apresentação. O paciente se recupera completamente após os primeiros surtos, mas com a repetição do ataque aos axônios e à mielina a doença vai se tornando cada vez mais evidente e de recuperação cada vez menos satisfatória. Lembre-se a degeneração do axônio não tem reversão.
2-                 Secundariamente progressiva: após 5 a 10 anos do início da doença remitente recorrente os surtos vão ficando cada vez mais sustentados até que se tornam a própria apresentação da doença, havendo comprometimento de hemisfério ou medular. Aqui há períodos de manutenção do quadro ou leve melhora. O limite para essa forma é de difícil caracterização.
3-                 Primariamente progressiva: essa forma é menos frequente e de início mais tardio, geralmente após os 40 anos, sendo apresentada como ausente de surtos. Pelo contrário, o paciente apresenta sinais e sintomas lentamente progressivos, sem remissão desde o início.
4-                 Progressiva recorrente: essa forma é progressiva desde o início, mas com períodos de exacerbação dos sintomas. Esses surtos surgem a partir de sintomas já instalados e quando melhoram voltam para o patamar de onde estavam, não havendo ausência de sintomas.

Por conta da dificuldade no diagnóstico diferencial segue os critérios de Schumacher para o diagnóstico:

·                    Idade entre 10 e 50 anos;
·                    Imagens positivas em placas na substância branca;
·                    Lesões que se disseminam com o passar dos surtos;
·                    Surtos com duração mínima de 24 horas, e remissão com intervalos mínimos de 30 dias;
·                    Quadros progressivos dentro de seis meses;
·                    Ausência de melhor explicação, assim como avaliação por neurologista clínico e rotina básica de exames.

EXAMES DE IMAGEM

Ressonância magnética: placas bem visualizadas nas proximidades dos ventrículos ou no corpo caloso denominados de dedos de Dawson. Na espectroscopia de prótons, que é uma RM direcionada a uma área específica a qual se pretende estudar pode encontrar diminuição do N-acetil aspartato e aumento do mioinositol e colina nas fases agudas.

Na análise do LCR encontra-se proteinoraquia por aumento de albumina, e obviamente ocorre aumento de leucócitos em especial linfócitos T.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Encefalomielite aguda disseminada: é desmielinizante, causada por vírus e bactérias. Vírus da hepatite, HIV, herpes vírus, caxumba, rubéola, do dengue e enterovírus. Bactérias são a legyonella, chlamydia e listeria monocitogenes, além das vacinas para hepatite B e SRC. Essa doença causa um único sintoma de intensidade variável. Geralmente dor de cabeça, confusão mental ou distúrbios de consciência, precedidos em 1 a 4 semanas de um quadro febril.

Neuromielite ópitica faz o cometimento transverso de extensão maior que três vertebras e não há comprometimento do encéfalo. Há pleocitose e proteinorraquia. Na ausência das bandas oligoclonais há aumento expressivo de eosinófilos. A diferença na apresentação dessa doença é que não há agravamento dos surtos ao longo do tempo e sua apresentação é súbita. Mesmo assim o que preocupa é o reaparecimento de novos sintomas e não exacerbação dos já existentes. O pior perigo é o comprometimento respiratório. Ocorre nos paciente recidivantes, geralmente após 5 anos do início da doença.


TRATAMENTO

O tratamento dos surtos atualmente é feito à base de glicocorticoides: metilprednisolona, predinisona e daxametasona. Muitos serviços dão preferencia à pulsoterapia com metilpredinisolona (1 grama) com infusão EV por 2 horas por 3 a 5 dias, seguida de predinisona 1 mg/Kg/ dia por 14 dias. Metade dos pacientes não respondem bem ao tratamento quando cursam com surto grave. Nesse caso a segunda linha de tratamento é a plasmaférese, a imunoglobulina ou imunossupressores.Para surtos sensitivos leves apenas a dexametasona dá conta do recado na dose de 16 mg/Kg por dia por 5 dias.

 O tratamento da forma remitente recorrente ou secundariamente progressiva é preferencialmente realizado com imunomoduladores. O interferon beta 1a ou 1b são a primeira escolha ao lado do acetato de glatirâmer, lembrando que paciente em idade fértil deve usar anticontraceptivos sistemáticos e caso ocorra gravidez a medicação deve ser suspensa. O tratamento é realizado por prazo indeterminado.

Nenhuma droga se mostrou eficaz no tratamento da forma primariamente progressiva. Nas formas agressivas a escolha é pelo mitoxantrone. Outros imunomoduldores, tais como a ciclofosfamida e claridina não parecem ter benefícios para EM e a ciclosporina é contraindicada. Alguns pacientes demonstram remissão dos surtos ao uso de azatioprina. 

A imunoglobulina e a plasmaférese, ao contrário da miastenia gravis, que também tem caráter autoimune, não possui eficácia significativa aqui.


REFERÊNCIAS

Clínica médica: doenças dos olhos, doenças dos ouvidos, nariz e garganta, neurologia, transtornos mentais. v. 6. Barueri, SP: Manole, 2009.

COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.

LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2009.