segunda-feira, 10 de março de 2014

TRAUMA ABDOMINAL FECHADO


Sinal do cinto de segurança


Trauma é a principal causa de morte dos indivíduos dentre 15 e 45 anos, perdendo apenas para as doenças cardiovasculares e o cancro. Já o trauma abdominal tem grande relevância dentre os traumas em geral, sendo a terceira região mais frequentemente afetada, e de grande importância devido à possibilidade de peritonite e hemorragias depois da lesão visceral ou de grandes vasos, como a aorta abdominal. 

Existem duas classificações para este trauma: o aberto e o fechado, que será tratado aqui. O fechado pode ser ainda direto se for causado por impactos, ou indiretos quando causado por aceleração ou desaceleração. O trauma direto por veículos é o mais frequente. Um dos motivos aparentemente banais, mas não na prática, é o posicionamento errado do cinto de segurança, que é colocado sobre o abdome ao invés da pelve. Isso justifica a queda dos casos graves e mortalidade após acidentes de carro, em contraponto com o aumento dos casos de lesões de intestinos.

Existem três forças passíveis de gerar o TAF: a força de constrição produz a lesão através do impacto sobre a superfície óssea; força tangencial modifica o posicionamento de algum órgão, tracionando-o além do limite; força de compressão súbita, quando geralmente as vísceras ocas são atingidas. Essa pode ser causada na desaceleração abrupta, quando as vísceras saem do seu posicionamento e são também esmagadas entre a parede abdominal e a coluna vertebral. Os órgãos mais frequentemente afetados são o baço, o fígado, o intestino delgado, rins, bexiga, cólon, reto, diafragma e pâncreas. Segundo Von Bathen 39% dos casos envolvem o baço e 5% envolvem o fígado. Fraturas de costelas, equimoses hematomas são indicativos de TAF, e quando há envolvimento das costelas as chances são ainda maiores, geralmente com fígado ou baço atingidos.

Hematoma em saco escrotal, sangramento por vagina ou reto, além de hematúria macroscópica é indicativo de fratura de pelve e comprometimento dos órgãos dessa região. O sinal de Gray Turner e/ou Cullen tão indicativos de pancreatite aguda, aqui indicam hemorragia retroperitoneal, surgindo após horas ou dias, o que traduz os 50% dos pacientes com hemoperitôneo importante sem quaisquer sinais no momento da admissão.  Sensibilidade dolorosa à palpação também se relaciona com lesão peritoneal. Ruídos hidroaéreos na atura do tórax indica lesão de diafragma.



Sinal de Gray Tunner


Sinal de Cullen

A hemorragia pode ser a evolução mais óbvia, mas ocorrem também infecções quando há extravasamento de vísceras ocas, tais como o intestino, onde a flora bacteriana é abrangente. O sangue, bile, fezes, suco gástrico e urina são produtos que podem extravasar desses órgãos gerando sintomas de diversas intensidades, embora sempre prejudicado pelos estados de inconsciência da vítima, quando a avaliação inicial terá respostas mal expressas. Isso pode ocorrer não apenas pelo impacto causador do trauma, mas também por álcool, pois esse deprime o sistema nervoso e induz a respostas mascaradas durante o exame físico da vítima de TAF.

Algo que os profissionais de saúde devem ter muito cuidado é com a hemorragia em dois tempos, uma sucessão de eventos limitantes do sangramento num primeiro momento, mas não resistentes e por isso o paciente pode cursar com um novo sangramento durante o transporte até a unidade hospitalar, por exemplo. Nesse caso então o paciente refere dores difusas devido a irritação causada pelo contato das secreções já citadas com o peritônio, causadores de dores não restritas ao local de impacto. Essa irritação é muito comum quando o baço é traumatizado, geralmente evoluindo para uma rigidez abdominal denominada abdômen em tábua. Se houve grande extravasamento de sangue o paciente pode evoluir para choque caso não atendido rapidamente. Como é provável que os pacientes candidatos a esse quadro podem estar inconscientes, a hemorragia então será reconhecida por taquicardia, pulso fino e rápido ou ausente, palidez, pele pegajosa, sudorese fria, cianose de extremidades e hipotensão arterial.

Com a hemorragia também sobrevém a hipotermia, que é um grande problema nesses casos, pois as chances de morte são 100% quando a temperatura atinge 32 graus. Nesse estado é significativo quando o corpo se mantém e 36° por mais de quatro horas. O oxigênio livre estará diminuído, retardando ainda mais a produção de calor pela gordura marrom, haverá indução a arritmias cardíacas, aumento da resistência vascular e desvio para a esquerda da curva de dissociação do oxigênio. Ocorre também disfunção plaquetária e de fatores de coagulação, ativação do sistema fibrinoítico, causando hemodilução.

A queda do oxigênio nos tecidos vai alterar o metabolismo, aumentando a anaerobiose e causando acidose metabólica pelo aumento do lactato. Estudos indicam que se o lactato não for eliminado do organismo dentro de 24 horas, as chances de sobrevivência são gradativamente menores.

O tratamento aqui é muito dependente do fator causal, ou mecanismo de trauma, que nesse caso podem ser: invasão do habitáculo do veículo em colisão lateral, deformação do volante, cinto de segurança mal posicionado ou por desaceleração súbita por colisões em alta velocidade ou contra barreiras fixas, tal como postes.


DIAGNÓSTICO

Nesses casos a radiografia é limitada para definir o local de lesão, mas é útil para identificar projéteis como balas de revolver. Pelo contrário a ultrassonografia tem sido cada vez mais utilizada, possuído uma sensibilidade de 69 a 99% e especificidade de 86 a 100%. O problema da técnica é sua dependência do examinador e sua dificuldade quando há grandes coleções de líquido, pois dessa forma a condução do som estará dificultada. Outra vantagem da USG é o caráter portátil do aparelho, seu baixo custo, além da possibilidade da realização repetida.

Tais condições não se encaixam, por exemplo, na tomografia computadorizada, que possibilita a visualização bem definida de lesões em órgãos parenquimatosos, coleções líquidas e fraturas em costelas, mas possui alto custo, exige transporte do paciente, uso de contrastes, necessidade de cooperação do paciente quanto ao posicionamento e quietude, além de não ter boa definição para lesões intestinais. Mesmo assim a sensibilidade e especificidade desse exame ficam acima de 97%, provavelmente devido a sua indicação correta. O procedimento exige o uso de contraste preferencialmente por via venosa. Quando essa via estiver impossibilitada é utilizado um contraste oral iodado 1 a 2% dentro de um volume de 500 ml 30 minutos antes do exame e 250 ml imediatamente antes. Para visualização de intestino grosso, usa-se 150 ml do contraste por via retal imediatamente antes do exame. Já para estômago e duodeno usa-se por via oral 120 a 180 ml imediatamente antes do exame.

O espaço de Morrison fica entre o rim direito e o fígado, devendo sempre fazer parte da avaliação no TAF, pois em 97% dos casos de laceração pancreática ou esplênica, há acúmulo de líquido nesse espaço. A tomografia e a USG podem visualizar esse achado, mas esse último – como ecografia ou FAST – tem vantagem de não prover nenhum risco ao paciente e ser passível de realização no próprio leito. O FAST pode ser bem sensível quanto a identificações de líquidos, mas não o é na distinção deles, não definindo bile de sangue, urina ou ascite. É então que entra em cena o Lavado peritoneal diagnóstico com a principal função de identificar presença de hemorragia na cavidade intra-peritoneal, o que indicará a necessidade de laparotomia exploradora.

Lesões no fígado ocorrem em qualquer porção, porém a mais afetada é o lobo direito. Hematoma subcapsular e apresenta como uma imagem hipodensa, e exerce poder de massa sobre o parênquima hepático. Pode ainda se apresentar como lesão destrutiva lobas. Sugiro ler “DIAGNÓSTICO POR IMAGEM NO TRAUMA ABDOMINAL” (artigo). A necessidade evidente para laparotomia exploradora é a única contraindicação do FAST, e também o é para a Tomografia. 

CONDUTA

Todo o ATLS é direcionado para uma rápida avaliação da necessidade ou não de procedimento cirúrgico de urgência.  A avaliação primária tem por base a mnemônica ABCDE, com a seguinte sequencia de procedimentos: 1- avaliação da via aérea com rápida observação para obstruções ou alterações do padrão respiratório, estabilização da coluna e oxigenoterapia; 2- deve-se estar atento aos sinais de insuficiência respiratória, a saber a cianose, o adejo nasal (ou batimento de asa do nariz) e sons respiratórios ausentes ou tendente a isso, jamais deixando de esperar uma potencial parada respiratória e posterior ventilação mecânica; 3- controle da hemorragia, reposição do oxigênio e manutenção da temperatura corporal – uma alternativa é a expansão de volume com fluidos aquecidos; 4- avaliação através da escala de coma de Glosgow, lembrando que os números baixos nessa avaliação podem mascarar traumas importantes não demonstráveis num primeiro momento; 5- despir o paciente tentando ao máximo evitar a hipotermia, por essa induz ao aumento do consumo de oxigênio, vasoconstricção periférica e diminuição do débito cardíaco e da perfusão periférica. Mantas isotérmicas, assim como os fluidos aquecidos, também ajudam.

A avaliação secundária se direciona para a investigação do trauma, quando é colhida a história clínica, realizado o exame físico e indicado os exames diagnósticos. Aqui a mnemônica é AMPLE: A para alergias, M para medicações usuais, P para história pregressa, L para última refeição e E para a medicações utilizadas durante o atendimento. É imperante a especificação do mecanismo de lesão – como os já citados – para o correto direcionamento de exames e redução das do número de lesões não diagnosticadas. Durante o exame físico é importante considerar lesões abdominais qualquer evento traumático abaixo da linha que une os mamilo com os vértices dos omoplatas.

Dentre os exames pode-se começar com o FAST prosseguindo com a Lavagem Peritoneal Diagnóstica com as seguintes condições: dor abdominal de origem duvidosa por conta de fraturas em costelas, coluna ou pelve; exame difícil por conta do rebaixamento do nível de consciência por trauma nervoso ou por uso qualquer substância depressora. O FAST ainda permite a identificação de líquido no espaço hepatorrenal, esplenorrenal, fundo de saco de Douglas e saco pericárdico. Se o paciente está hemodinamicamente instável a TC não pode ser realizada.

Agora é o momento do DAMAGE CONTROL em três etapas: 1- se o paciente tem instabilidade hemodinâmica com evidência de hemorragia, sinais peritoneais como o de Cullen, e imagem indicando rotura de diafragma a indicação é de laparotomia para correção. Durante a cirurgia deve-se fazer manobras de rotação visceral para avaliar o estado das vísceras. 2- transferência do paciente para enfermaria de atenção intensiva, com ênfase na reposição de volume, na manutenção da temperatura corporal, correção da acidose, controle da coagulopatia e ventilação mecânica se for necessário; 3- regresso ao bloco operatório entre 12 e 48 horas quando o paciente já estiver hemodinamicamente estável, ou seja, com maior teto cirúrgico. Alguns profissionais priorizam esse retorno após o estabelecimento da temperatura acima de 36°, outros apenas quando o paciente tiver maior capacidade de redistribuição de líquidos para o terceiro espaço e com boa saturação de oxigênio. O certo é que a espera aumenta as chances de infecção tardia.  


REFERÊNCIAS

Trauma de abdome. Manual de atendimento Pré-hospitalar - SIATE/CBPR. Disponível em: http://www.defesacivil.pr.gov.br/arquivos/File/primeiros_socorros_2/cap_16_trauma_abdome.pdf

LUCCHESI, Fabiano R.; LAGUNA Claudio B.; MONTEIRO, Carlos R.; PRADO, Cecília H. M. A.; ELIAS JR, Jorge. DIAGNÓSTICO POR IMAGEM NO TRAUMA ABDOMINAL. Medicina. Simpósio: trauma II. Capítulo III. v. 32. p. 401-418. Ribeirão Preto. Out/dez, 1999.

COSTA, Cleinaldo de Almeida; BAPTISTA-SILVA, José Carlos Costa; SOUZA, Raymison Monteiro de; BURIHAN, Emil. Traumatismos de Grandes Vasos Abdominais in: Angiologia e cirurgia vascular: guia ilustrado. Maceió: UNCISAL/ECMAL & LAVA; 2003. Disponível em: URL:http://www.lava.med.br/livro.


FREITAS, Ana Sofia Gonçalves Dias. Trauma abdominal fechado. Mestrado Integrado em Medicina. Área: Cirurgia Geral. Revista Portuguesa de Cirurgia. Faculdade de Medicina. Universidade do Porto. Abril, 2010. 

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