quarta-feira, 11 de junho de 2014

ENTENDENDO OS SINTOMAS DO LÚPUS ERITEMATOSO SISTÊMICO




FISIOPATOLOGIA

O LES é uma doença inflamatória autoimune de causa desconhecida, cujo indivíduo passa a responder exageradamente a antígenos próprios que normalmente não desencadeariam nenhuma resposta maléfica. Sua prevalência no mundo é de até 76 casos por 100.000 habitantes, com mortalidade três a cinco vezes maior em relação à população geral, na maioria das vezes devido ao acometimento renal. A incidência no Brasil é de 8,7 casos novos por ano por 100.000 habitantes.

Existem três tipos de anticorpos envolvidos: antinucleares (ANA), contra estruturas citoplasmáticas e contra estruturas de membranas. Existem quatro tipos de anticorpos nucleares: contra DNA, contra histonas, contra proteínas não-histônicas ligadas ao RNA e contra antígenos nucleolares. A presença dos ANAs não serve como diagnóstico de LES, pois eles aparecem em diversas outras patologias auto-imunes, porém, sua ausência vai servir como diagnóstico de afastamento de grande valor. Já os anticorpos contra moléculas de membranas são mais diversos. Eles podem se agregar nos fosfolipídios, na beta-2-glicoproteína I, na proteína S, na proteína C e na cardiolipina, a qual será solta após morte da estrutura que a contém e consequentemente irá positivar o exame VDRL.

A doença se manifesta em qualquer porção do organismo, podendo culminar em febre, eritema, perda de cabelo, artrite, pleurite, pericardite anemia, nefrite, leucopenia, trombocitopenia e doença do sistema nervoso central. Dentre as suspeitas etiológicas estão os fatores genéticos, hormonais, imunológicos e ambientais. Foi observada a presença de genes em comuns nos pacientes envolvidos, e o fato do LES estar mais presente nas mulheres em idade fértil levanta a suspeição do peso hormonal. Distúrbios no metabolismo do estrogênio foram encontrados em homens e mulheres doentes, e a concordância entre gêmeos homozigotos reforça o envolvimento genético.  

O modelo da reação imune pode ser observado na gromerulonefrite proliferativa difusa, evento parecido com a glomerulonefrite pós-estreptococcica, quando antígenos se depositam na membrana dos glomérulos ativando o sistema de complemento e fatores quimiotáticos para leucócitos que destroem locais onde os antígenos se depositaram. Enquanto o glomérulo é lesionado, as células de defesa liberam outros agentes quimiotáticos e com isso a inflamação continua a causar lesão até a completa perda da função dos rins. Existe também a gromerulonefrite lúpica, que possui mecanismo semelhante, mas as manifestações são mais brandas. Isso ocorre porque a reação depende do anticorpo envolvido – IgG nesse caso – e sua menor disponibilidade de sítios ligantes.

Como os anticorpos terão afinidade por superfícies celulares em geral, hemácias, leucócitos e as plaquetas poderão estar sendo destruídas pelo sistema de complemento e com isso o paciente acaba cursando com anemia hemolítica, leucopenia e trombocitopenia. Anticorpos contra o complexo fosfolipídeos-beta-2-glicoproteína I presente nos vasos, interfere na ação anticoagulante da beta-2-glicoproteína I causando tromboses arteriais e venosas, inclusive no cérebro e nas placentas, induzindo ao abortamento.

Como estamos falando de anticorpos soltos na corrente sanguínea, as manifestações podem ocorrer em qualquer local. Nas manifestações cutâneas um dos desencadeadores é a exposição ao sol, quando os raios ultravioleta (UV) promovem lesão de DNA e por conseguinte o organismo produz anticorpos anti-DNA. Os raios-ultravioleta também induzem a liberação de interleucina 1 pelos ceratinócitos, induzindo inflamação em locais próximos a eles. As agressões causadas pelos raios UV culminam em manifestações eritematosas, sendo a mais comum as lesões em asa de borboleta, um eritema único espalhado na altura dos zigomáticos e nariz. A fotossensibilidade, assim como o sinal em asa de borboleta ocorre em 50% dos pacientes.



As lesões vasculares causam obliteração da luz dos vasos, aumento das células endoteliais e trombos, mas normalmente não há necrose. No pulmão a atividade imune lesa a parede alveolar causando hemorragia e edema. É a pneumonia lúpica. No coração trombos de fibrina e plaquetas secundários ao acúmulo de imunocomplexos causa a endocardite de Libman-Sacks, quando esses trombos formam vegetações e se configuram na manifestação cardíaca mais característica do LES.




QUADRO CLÍNICO






Queixas articulares se apresentam em 95% dos pacientes sendo assimétricas e migratórias, desaparecendo de um a três dias. Os locais mais frequentes são dedos, mãos, punhos e joelhos, mas podendo surgir também em outros locais inclusive em quadris. Aqui também há rigidez matinal, mas se limita a minutos. Outra manifestação que também ocorre na artrite reumatoide, porém mais branda, é a deformação em pescoço de cisne nos doentes de longa data. Necrose pode ocorrer na cabeça do fêmur e do úmero. A osteoporose costuma ocorrer, sendo agravada quando o paciente faz uso de corticoides.

Cabelo lúpico





Outra manifestação cutânea importante é o eritema discoide, ocorrendo em 25% dos pacientes após a estimulação dos queratinócitos. São placas redondas, de bordas definidas, cobertas por uma escama aderente que se estende para os folículos pilosos. Nas bordas é apresentada uma lesão inflamatória em expansão que vai cicatrizando e deixando para trás uma cicatriz atrófica e despigmentada, semelhante à lesão da psoríase. Os locais mais comuns são o couro cabeludo, pescoço, ombros, face e orelhas. Quando a doença se manifesta apenas como discoide o quadro é denominado de lúpus discoide, e nos pacientes que apresentam lesão única, as chances de evoluir para LES é de 10%. Nas lesões discoides a perda de cabelo consequente é permanente, mas a perda de cabelo não-discoide que ocorre em 71% dos pacientes geralmente retorna com o chamado cabelo lúpido, diferente do cabelo natural. É secundário a um período de estresse, gravidez, recrudescência do LES e uso de esteroides.



Lesão discóide.



Lesões cutâneas também podem ocorrer difusamente sobre a pele, manifestadas como pápulas pequenas, eritematosas e discretamente descamativas, ocorridas geralmente em antebraço e parte superior do dorso. Os pacientes que apresentam esse tipo de lesão estão relacionados com anticorpos anti-Ro e HLA-DR3.

Manifestações vasculares são comuns, como o fenômeno de Raynaud, que é benigno, mas também pode causar ulcerações quando ocorre um vasoespasmo que oclui a luz dos vasos. As telangiectasias podem ocorrer quando o paciente está sob a influência de um vasodilatador, como temperaturas elevadas e etilismo. Quando as manifestações são de vasoespasmo o gatilho pode ser o frio, a cafeína, tabagismo, descongestionante e estresse.

A pleurite ocorre em 50% dos pacientes, podendo estar acompanhada de tosse e dispneia. A ausculta vai identificar atrito pleural e o raio-x mostrará derrame pleural. Esses sintomas também se constituem em pneumonite lúpica, ocorrida em até 12% dos pacientes, nos quais ocorrerá fibrose de estruturas pulmonares e por isso o prognósticos desses casos é ruim.

As manifestações cardíacas são ricas. Haverá ataque inflamatório do tecido cardíaco e com isso é observado dor retroesternal, derrame e atrito pericárdico. As valvas, assim como as coronárias, também podem ser atingidas produzindo alterações auscultatórias.

Por conta da agregação dos antígenos IgM às membranas das células sanguíneas, o indivíduo com LES vai cursar com anemia, geralmente normocítica e normocrômica, manutenção dos níveis de ferro e contagem de reticulócitos baixa. Leucopenia é muito comum, mas a contagem não é muito baixa. 50% dos pacientes se encontram abaixo de 4.500 e 17% se encontram abaixo de 4.000. De maneira semelhante a trombocitopenia abaixo de 150.000 por milímetro cúbico é encontrada em de 50% dos paciente e abaixo de 50.000 é encontrada em  10%. Isso é tão prevalente que a púrpura trombocitopenica é muitas vezes o primeiro sinal do LES e quando integra o quadro de pacientes com anemia hemolítica constitui-se um quadro muito sugestivo de lúpus.

Na púrpura trombocitopenica, as moléculas IgG se ligam à superfície das plaquetas, o que acaba induzindo ao ataque por macrófagos e queda das plaquetas numa velocidade a qual o corpo não consegue compensar. Daí instala-se a trombocitopenia, ocorrendo sangramentos espontâneos quando as plaquetas ficam abaixo de 20.000.

Mesmo sendo uma doença inflamatória os linfonodos e o baço apresentarão poucas mudanças. Alguns linfonodos poderão estar levemente aumentados, não são dolorosos à palpação, são amolecidos e geralmente identificáveis no pescoço. Já o baço estará aumentado em apenas 10 a 20% dos pacientes, geralmente na doença ativa. Hepatomegalia também pode ocorrer. A anemia pode ocorrer ainda por via intestinal. Acometimento do trato gastrointestinal pode chegar a 40% dos pacientes, os quais geralmente referem dor e dificuldade de engolir. Na presença de dor a vasculite sempre deve ser lembrada devido às chances do ataque inflamatório a vasos sanguíneos. Se a dor for no hepigastro, cursando com náuseas e vômitos, pode-se estar diante de pancreatite, que tem a vasculite como fator desencadeante.

Pacientes com LES quase que invariavelmente irão cursar com algum nível de ansiedade e/ou depressão, estando ai envolvido o peso patológico da doença e o medo do paciente em perder suas capacidades funcionais. Outros sintomas neurológicos incluem insônia, anorexia, mialgia, artralgia, palpitação, perda de memória e labilidade emocional. Outros sintomas mais preocupantes envolvem a psicose, com incidência em 24% dos pacientes. Esse sintoma infelizmente também pode ser causado pelos esteroides utilizados na terapêutica do LES, além de outros medicamentos comuns que precipitam problemas inusitados, como a meningite asséptica causada pelo ibuprofeno. Como se fala de ataque inflamatório a vasos sanguíneos quando os problemas envolvem a vasculite, pode-se imaginar o peso desse evento no tecido cerebral e assim entender porque até 15% dos pacientes cursam com acidente vascular cerebral.

Outros eventos relacionados são os abortos presentes em até 30% das mulheres com LES, e a origem ou exacerbação da doença devido ao uso de alguns medicamentos, tais como a hidralazina ou a procainamida. Trata-se de uma forma branda e reversível do LES, mas há estudos que demonstram que até 100% dos pacientes que previamente possuem os antígenos anti-nucleares evoluem para lúpus ao uso da procainamida.

Resumindo, o LES se inicia de maneira inespecífica, geralmente com fadiga, febre, perda de peso e mialgia e/ou artralgica. O indivíduo não se preocupa como deveria e na ausência de tratamento segue as manifestações específicas, tais como a artrlagia, as manifestações cutâneas (com destaque para o eritema em asa de borboleta e lesão discoide), úlceras nas mucosas em geral, lesões renais, pleurite, derrame pleural e pneumonia lúpica, atrito pericárdico, esplenomegalia, hepatomegalia e sintomas neurológicos, como a psicose. Presença de anemia, azotemia, trombocitopenia, leucopenia, hematúria, piúria em algum nível de associação levanta a suspeita de LES. Crianças tendem a apresentar mais o comprometimento renal, idosos tem sintomas mais brandos, mas apresentam maior ceraconjuntivite seca.

Como os sintomas iniciais são inespecíficos a doença se confunde com outras e por isso pode ser realizada a pesquisa de anticorpos anti-nucleares (ANA), mas apenas o resultado negativo tem um valor preditivo satisfatório, ou seja, de realmente ser negativo. Caso venha ser positivo deve-se solicitar as proteínas nucleares Sm, anti-Ro/SSA e anti-La/SSB, e RNP. Outro exame complementar é a determinação do nível das proteínas do complemento, que raramente estão deprimidos em outras doenças reumáticas, mas assim estão na LES quando se trata de C3, C4 e CH50 (complexo hemolítico total), principalmente quando o rim é atingido.


LISTA DE EXAMES DIAGNÓSTICOS E COMPLEMENTARES:

- hemograma completo;
- contagem de reticulócitos;
- teste de Coombs direto;
- velocidade de hemossedimentação (VHS);
- proteína C reativa;
- eletroforese de proteínas;
- aspartato-aminotransferase (AST/TGO);
- alanina-aminotransferase (ALT/TGP);
- fosfatase alcalina;
- bilirrubinas total e frações;
- desidrogenase láctica (LDH);
- ureia e creatinina;
- eletrólitos (cálcio, fósforo, sódio, potássio e cloro);
- exame qualitativo de urina (EQU);
- complementos (CH50, C3 e C4);
- albumina sérica;
- proteinúria de 24 horas;
 - VDRL;
- avaliação de autoanticorpos (FAN, anti-DNA nativo, anti- Sm, anticardiolipina IgG e IgM, anticoagulante lúpico, anti-La/SSB, anti-Ro/SSA e anti-RNP).


TRATAMENTO

1.                  Exercício físico;

2.                  Prednisona 0,5 a 2 mg/Kg/dia.

Comprometimento hematológico: prednisona em dose alta ou muito alta por quatro a seis semanas e a partir daí faz-se a redução gradual seguindo a resposta do paciente. A prednisolona é utilizada nos casos graves independente do órgão atingido. 25% dos pacientes não aceitam bem a corticoidoterapia. Nesses casos pode ser utilizada a azatioprina na dose de 1 a 3 mg/Kg/dia ou danazol associados a prednisona em baixas doses. A dose de manutenção do danazol é de 200 a 400 mg/Kg/dia, sendo que a dose inicial pode ser mais alta a critério do médico.

Nas anemias hemolíticas ou nas plaquetopenias graves que não respondem bem ao corticoide pode ser prescrita a imunoglobulina intravenosa na dose de 400 mg/Kg/dia. O problema dessa terapêutica é seu custo extremamente elevado.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Portaria Nº 100: Aprovação do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Lúpus Eritematoso Sistêmico. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2013/prt0100_07_02_2013.html

LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2009.

COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.


Goldman L,  Ausiello D. Cecil: Tratado de Medicina Interna. 22ªEdição. Rio de Janeiro: elsevier, 2005.