terça-feira, 1 de abril de 2014

OFIDISMO: COMO TRATAR A PARTIR DO RECONHECIMENTO DOS SINAIS E SINTOMAS

FIGURA 01: SURUCUCU


EPIDEMIOLOGIA

Ocorrem óbitos no mundo na ordem de 100.000 por ano por acidentes ofídicos, sendo que esse número é apenas 0,45% do total dos acidentes. No Brasil o CIAVE recebe por ano 20.000 notificações, com 0,43% de letalidade. Na Bahia o CIAVE registra 3.068 acidentes por ano. Existem quatro gêneros de serpentes de importância médica no Brasil: Bothrops, os quais correspondem a 90% de todos os acidentes ofídicos; Crotalus, que corresponde a 8%; Lachesis, 1,5%; e Micrurus, 0,5%.  70% dos acidentes envolvem homens e também 70% acomete o pé e perna e 13% a mão e o antebraço. 53% dos acidentes predominam na faixa de 15 a 49 anos e muitos deles são acidentes de trabalho.


OS ACIDENTES

Algumas características permitem identificar uma serpente peçonhenta. No Brasil as classes referidas possuem cauda lisa (Bothrops), eriçada (Lachesis) ou com um guizo (chocalho) na ponta, que é a cascavel ou Crotalus. A exceção do gênero Micrurus, gêneros citados possuem um orifício, que fica entre o olho e a narina, com tem função termorreceptora: é a fosseta loreal. Quando essa estrutura é ausente e a serpente não possuem anéis coloridos, ela não é peçonhenta.
FIGURA 02: Necrose devastadora causada por acidente botrópico, que apesar de chocar, ainda é mais brando em relação ao acidente laquético.


As serpentes do gênero Bothrops, responsáveis pela maioria dos acidentes, são as jararacas, ou também conhecidas como caiçaca, urutu-cruzeiro, jararacuçu, urutu e cobra-de-papagaio. Ela apresenta comportamento agressivo quando se sente ameaçada e seu bote pode não produzir ruído algum. O veneno dessa serpente possui três efeitos: proteolítico, coagulante e hemorrágico. A ação proteolítica na realidade é uma generalização para a ação das enzimas hialuronidaes e fosfolipases com consequente liberação de fatores de inflamação e hemorraginas, resultando em edema, dor, bolhas e necrose. A peçonha dessa serpente também possui uma ação semelhante à protrombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina, gerando trombos como na CIVD, mas de menor disseminação. As hemorragias ocorrem por conta das hemorraginas contidas na peçonha, estas possuindo ação de lesar a membrana basal e o endotélio dos vasos no local de inoculação, onde forma uma placa gangrenosa.

FIGURA 03: gênero Bothrops ou jararaca.


FIGURA 04: Flictemas do acidente botrópico.

Os acidentes ocorridos pelo gênero Bothrops podem ou não evidenciar o local de inoculação, mas sempre haverá edema precoce expansível para todo o membro e dor de intensidade variável. No período de algumas horas o paciente evolui com equimoses, bolhas, necrose com abcesso e linfadenopatia ganglionar. Os efeitos sistêmicos incluem eventos hemorrágicos em geral, tais como sangramentos em ferimentos pré-existentes, gengivorragia, epistaxes e hematêmese. Há também vômitos, cólica abdominal e diarreia, sendo esses sinais bem característicos deste tipo de acidente. As hemorragias podem levar o paciente a óbito quando ocorrem no trato gastrointestinal e no sistema nervoso, ou ainda por choque. Outra complicação com potencial para óbito é a insuficiência renal aguda devido ao contato da peçonha com os túbulos renais.                

No acidente crotálico o perigo são as ações da peçonha no sistema nervoso, com potencial para levar à morte 72% das pessoas não tratadas com o soro anticrotálico. 11% vão a óbito mesmo com o uso do soro por insuficiência renal aguda.

FIGURA 05: Cascavel.

A ação neurotóxica da peçonha é causada pela crotoxina, de ação pré-sináptica, com bloqueio da liberação de acetilcolina e com isso bloqueio neuromuscular. Existe uma fração do veneno não identificada que produz rabdomiólise e liberação de mioglobina. Mioglobina livre, por sua vez é tóxica assim como a hemoglobina livre, produzindo ação hemolítica. A ação coagulante esvai todas as reservas de trombina e pode por fim evoluir para incoagulabilidade sem redução do número de plaquetas. Mesmo assim, na maioria das vezes as ações hemorrágicas são discretas.

As manifestações sistêmicas incluem mal-estar, náuseas, vômitos, sudorese, prostração e sonolência. Já as neurológicas são ptose palpebral, fácies miastênicas, oftalmoplegia, midríase, visão turva e diplopia. Insuficiência respiratória pode ocorrer, mas não é frequente.A urina escurecida ocorre pela liberação de mioglobina e pode indicar a principal complicação: insuficiência renal aguda. A anúria pode ocorrer dentro de 24 horas, sendo explicado pela necrose tubular. A mioglobina tem ação lesiva direta sobre os túbulos renais. Com o PH ácido da urina a mioglobina será precipitada no túbulo, mantendo a agressão química pelo agrupamento heme.

Os acidentes laquéticos são exemplificados pela surucucu (figura 01), pico-de-jaca ou surucutinga. Lachesis são a classe de serpente peçonhenta de maior tamanho no mundo, com relato de até 4 metros. A ação de sua peçonha tem as mesmas manifestações locais do acidente Bothrópico, pois tem os mesmos efeitos coagulante, hemorrágico e proteolítico, porém mais intensos. Não há efeitos neurológicos. Em até duas horas após o acidente o paciente manifesta dor e edema extensos. Segue então equimose extensa, linfadenopatia, sangramentos, flictemas ou bolhas de conteúdo sanguinolento ou seroso, tudo dentro das primeiras cinco horas. O choque circulatório aqui é muito mais rápido, ocorrendo em até 10 horas no acidente bothrópico e em 15 minutos no acidente laquético, devido ao rápido consumo dos fatores de coagulação.
FIGURA 06: Necrose difusa por acidente laquético.


Alguns sinais laboratoriais dão ideia deste tipo de acidente como a queda dos fatores de coagulação, aumento do Tempo de coagulação (TC), hemoconcentração com elevação de hematócrito e hemoglobina, leucocitose, elevação de transaminases e creatinoquinases (CK). Epistaxes, hematêmese, gengivorragia, hemoptise e hematúria são menos frequentes, assim como a insuficiência renal aguda. Já nos casos graves há taquicardia, taquipneia, sudorese, agitação, ansiedade, cefaleia, tontura, visão turva, muitas vezes relacionados ao choque cardiocirculatório. A reação local mais impactante é a necrose tecidual, com abcesso e síndrome compartimental que evoluem para déficits funcionais e amputação, ou pelo menos exigem fasciotomias. A insuficiência renal não é frequente, assim como o choque.

O acidente elapídico ocorre pelo gênero Micrurus, conhecidas como corais. Como essas serpentes não são agressivas e talvez por isso correspondem a somente 0,4% do total de acidentes ofídicos.  A ação da peçonha é eminentemente neurotóxica a nível da junção neuromuscular ou pós-sináptico, para a maioria dos exemplares dessas serpentes. Como a neurotoxina da peçonha tem um pequeno peso molecular ela se difunde rapidamente pela corrente sanguínea, alcançando os músculos na placa motora para competir pelos receptores da acetilcolina. As ações pré-sinápticas se apoiam na inibição da liberação da acetilcolina, assim como pela crotoxina.
FIGURA 07: Coral.


O resultado da peçonha é paralisia muscular, mas felizmente sua ação é exclusivamente periférica. No local da picada haverá dor e edema, enquanto que no membro atingido haverá parestesia. Assim como no acidente crotálico vai haver ptose palpebral e diplopia. Haverá também fásceis miastenica, mialgia generalizada, fasciculações musculares, dificuldade de deambulação e paralisia dos membros. Se houver paralisia da musculatura venopalatina o indivíduo perderá a capacidade de deglutir, de vomitar e mastigar. O caso grave será aquele em que a ação da toxina se expande para a musculatura torácica, culminando em insuficiência respiratória e morte.


EXAMES DIAGNÓSTICOS DE COMPLICAÇÕES

O tempo de coagulação é justificado pelo efeito das peçonhas sobre a trombina, assim como o hemograma, pois o acidente laquético, e o botrópico, vão produzir hemoconcentração, embora de intensidades diferentes. Deve-se solicitar também a dosagem dos fatores de coagulação. CK-MB vai demonstrar a gravidade da rabdomiólise do acidente crotálico, além das transaminases hepáticas. A avaliação do clearence de creatinina promove o acompanhamento da insuficiência renal. O acidente crotálico ainda exige desidrogenase lática e aldolase, além da biopsia muscular para comprovar a miotoxidade.


TRATAMENTOS

Tratamento contra o veneno botrópico: administração precoce de soro antibotrópico, antibotrópico-laquético e antibotrópico-crotálico, sempre por via intravenosa. Deve-se seguir o esquema dos quadros sintomáticos. No leve e moderado vai haver dor, edema e equimose, mas a classificação do quadro vai depender da intensidade. Se há eventos hemorrágicos de qualquer intensidade, anúria ou sinais de choque o quadro é classificado grave. Então no quadro leve se utiliza 2 a 4 ampolas de soro, no moderado 4 a 6 e no grave 12.

O tratamento geral envolve manter o membro afetado elevado, uso de qualquer analgésico e hidratação, esta sendo de 30 a 40 ml/hora (em 24 horas contínuo) no adulto e na criança 1 a 2 ml/Kg/hora. Essa manobra é direcionada à prevenção da insuficiência renal aguda, pois dilui a urina e restringe o contato direto da peçonha com a superfície dos túbulos. Para prevenir complicações por bactérias que porventura tenham adentrado pelo local de inoculação, pode-se utilizar clindamicina, que possui boa ação contra estreptococcus e estaphylococcus, e possui boa distribuição.

Caso seja notado que o edema esteja evoluindo para síndrome compartimental deve-se realizar a fasciotomia rapidamente.

Tratamento contra o veneno crotálico: é feito com soro anticrotálico ou antibotrópico-crotálico. Para prevenir a insuficiência renal é louvável hidratar a paciente como citado acima (1 a 2/ 30 a 40).

Nesse acidente a quantidade de ampolas de soros dependerá se o acidente for leve, quando usará cinco ampolas, moderado usará 10 ampolas e no grave será necessário 20 ampolas. Todos os sintomas no quadro leve serão discretos, a fáceis miastênica estará ausente ou irá se manifestar bem depois do acidente, assim como a visão turva. O quadro moderado irá apresentar a fáceis miastênica precocemente, podendo ser discreta ou evidente. Nesse quadro a urina estará um pouco escurecida, sendo esse um dado importante para diferenciar do quadro grave. A anúria também, pois somente estará presente no quadro grave, e os todos os sintomas gerais serão evidentes e intensos. Para tratar a anúria utiliza-se manitol a 20% na dose de 5 ml/Kg na criança e 100 ml no adulto, ou furosemida 01 ampola ou 20 mg.

Tratamento do acidente laquético: usa-se o soro antilaquético ou antibotrópico-laquético. O número de ampolas segue a evolução clínica do paciente. Inicialmente se utiliza 10 ampolas. Caso sinais de manifestações vagais continuem, tais como hipotensão e bradicardia, aumenta-se o uso para até 20 ampolas.
 
Tratamento para o acidente elapídico: a soroterapia sempre é de 10 ampolas de soro antielapídico, mas o tratamento não se limita a ele. Deve ser implementado anticolinesterásicos para aumentar o tempo de presença da acetilcolina na placa motora. Mas antes disso deve utilizar um antagonista competitivo dos efeitos muscarínicos da cetilcolina (extravasamento de potássio da célula), como a bradicardia. Usa-se a atropina na dose de 0,05 mg/Kg na criança ou 0,5 mg no adulto por via IV. Aplica-se então a neostigmina, que é o anticolinesterásico, na dose de 0,05mg/Kg por via IV no adulto e criança. A melhora com o uso dessa medicação é rápida nos primeiros 10 minutos. A terapêutica de manutenção será com essa mesma medicação na dose de 0,05 a 0,1 mg/Kg a cada quatro horas, ou até em intervalos menores desde que precedidos de atropina.

OBS: a ampola da atropina possui 0,25 mg e da neostigmina possui 0,5 mg por ampola.


REFERÊNCIAS

Pitta GBB, Castro AA, Burihan E, editores. Angiologia e cirurgia vascular: guia ilustrado. Maceió: UNCISAL/ECMAL & LAVA; 2003. Disponível em: URL: http://www. lava.med.br/livro.

BRASIL. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Ministério da Saúde. Fundação Nacional da Saúde. Brasília. Out, 2001.

RODRIGUES ET AL. Apostila de toxicologia básica. Governo Estadual da Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Centro de Informações Antiveneno. Salvador-Ba. Ago, 2009.


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