quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ENTENDA A PANCREATITE

DEFINIÇÃO



É um processo inflamatório agudo do pâncreas que pode se disseminar para tecidos adjacentes e outros órgãos. Pode ocorrer necrose no pâncreas, fato esse ocorrido em 20% dos casos. Essa necrose é gordurosa e pode atingir área peripancreática, compondo os critérios de complicação, juntamente com choque, insuficiência pulmonar e renal. Pode ser formado um pseudocisto com coleção de enzimas pancreáticas que antecedem granulação e fibrose em aproximadamente quatro semanas. Caso esse pseudocisto se infecte origina-se o abcesso pancreático, havendo pouca ou nenhuma necrose, geralmente surgido aproximadamente depois de quatro a seis semanas do início da pancreatite aguda.

75% dos casos são causados por colelitíase ou por abuso do álcool, esse último ainda de mecanismo desconhecido. Quando se trata da doença biliar a proporção de homens e mulheres é de 1:3, contudo em se tratando do álcool como causa essa proporção se altera para 6:1. 80 a 90% dos casos de pancreatite aguda se trata de um quadro leve, também denominada intersticial. Nesse caso a doença é restrita ao pâncreas, autolimitada, possuindo uma mortalidade em torno de 2%, porém na dependência de um quadro de fragilidade prévia.


Todo o problema gira em torno da ativação das enzimas pancreáticas antes da chegada no duodeno. Essas enzimas são na realidade pró-enzimas e tripsinogênio e se ativadas dentro do pâncreas promovem autodigestão da glândula. Os mecanismos para evitar esse evento são: dependência das pró-enzimas de entrar em contato com as enteroquinases no duodeno para serem ativadas; essas enzimas, mesmo inativadas são separadas em compartimentos próprios; o pâncreas produz um inibidor de tripsina para que esse não venha a ter uma ativação precoce; entra em contato com inibidores enzimáticos produzidos pelo fígado, alfa-1-antitripsina e a alfa-2-macroglobulina.

A ativação do tripsinogênio precede a ativação de enzimas ativas, tais como a elastase, quimiotripsina e fosfolipase A2, sendo esses os autores da catástrofe pancreática que se segue. Essas enzimas degradam o pâncreas, podendo chegar à cavidade peritoneal. Isso causa perda de líquido repleto de proteínas para essa cavidade, o que desequilibra as pressões intravasculares e induz o indivíduo ao choque. Caso as mesmas enzimas atinjam a circulação, podem alcançar qualquer órgão e causar o que estaria ocorrendo no pâncreas.




Entendido que a ativação das enzimas pancreáticas antes do momento devido, precisa-se também entender que tal evento ocorre secundário a uma hipoperfusão pancreática, deflagrando uma lesão inicial que precede uma desorganização grave na glândula. A isquemia secundária à privação de oxigênio tem como consequência acúmulo de radicais livres e atração por células polimorfonucleares, ambos constituindo os agressores iniciais.

As principais interleucinas envolvidas serão a IL-1, 6, 8 e 12, além do fator ativador de plaquetas e TNF. Como os radicais livres regulam a quantidade de TNF dentro da glândula o aumento do TNF irá ativar eventos inflamatórios, incitar liberação de outras citocinas e atrair células de defesa que continuarão a agressão. A IL-6, por exemplo, é um importante marcador de comprometimento sistêmico, sendo bom indicativo de mortalidade e de tempo de permanência hospitalar, ou seja é um fator para avaliação de prognóstico, lembrando apenas de que deve ser dosado nas primeiras 24 horas após o início dos sintomas. Maior valor ainda se encontra na dosagem de IL-8, mas nesse caso será preditivo de lesão pancreática grave.

Dentre as causas para a pancreatite aguda estão: infecção por áscaris lumbricoides, que induz à obstrução pancreática, sendo um dos fatores etiológicos mais importantes em crianças nos países em desenvolvimento; trauma está relacionado ao surgimento de cistos após um período assintomático de semanas a meses; alteração anatômica da papila que desemboca no duodeno também está referida como fator etiológico, pois pode ocorrer que a papila de Vater tenha um diâmetro menor e com isso não consiga acompanhar a drenagem das enzimas pancreáticas, o que induz ao acúmulo das mesmas no pâncreas; litíase biliar; hipertrigliceridemia; atividade auto-imune, esta com quadro clínico semelhante à pancreatite crônica com dor e elevação de enzimas séricas discretas.

Nos casos ocorridos por litíase biliar, o evento que deflagra a pancreatite é sempre por obstrução, porém nem sempre por regurgitação. Ocorre regurgitação por impactação dos cristais litiásicos, ou pelo edema secundário ao trauma causado pela passagem dos mesmos pela papila de Vater. A produção contínua de enzimas, impedida de cair no duodeno, transbordaria para o ducto pancreático principal. Quando há pancreatite sem refluxo, ocorre que o acúmulo de sais biliares nos ductos pancreáticos leva a sua captação desses pelas células pancreáticas e com isso aumento do cálcio citoplasmático. O resultado seria, por exemplo, uma ativação de mitocôndrias e liberação de radicais livres que deflagrariam necrose.


DIGNÓSTICO

CLÍNICO

Na pancreatite o exame clínico tem grande importância, pois nas primeiras 24 horas possibilita identificar 30 a 40% dos casos e se passadas 48 horas esse valor aumenta para quase todos.

O primeiro sinal é a dor abdominal localizada em toda a porção superior do abdome com irradiação para o dorso (dor em faixa). Ocorre após as refeições e dura por 6 a 8 horas. Essa dor geralmente melhora quando o paciente se curva para frente. Quando a pancreatite é causada por álcool, costuma surgir com 24 a 72 horas após episódio de grande consumo. Mesmo assim inicialmente a palpação do abdome não é dolorosa. As náuseas e vômitos podem ser intensos o suficiente para agravar de maneira importante a hipovolemia ocorrida quando há extravasamento de líquido hiperproteico para o terceiro espaço.

Após 48 a 72 horas podem surgir eventos hemorrágicos, manifestados como os sinais de Cullen – equimose de coloração azul e preta na região periumbilical – e Grey Turner – equimose de mesma aparência em flancos. Essas manifestações evoluem quando há hemorragia retroperitoneal, o que indica pancreatite grave.


A icterícia ocorre em 25% dos casos, e praticamente todos ocorrem quando o paciente cursa com litíase biliar. Hemorragia digestiva alta pode ocorrer secundária a vômitos intensos por síndrome de Mallory-Weiss. Confusão mental geralmente se dá por conta da perda de eletrólitos pelo conteúdo emético.  
SINAL DE CULLEN

Os leucotrienos C4 e D4 juntamente com as cininas liberadas no processo inflamatório vão acrescer a tendência ao choque por conta da vasodilatação e do efeito depressor sobre a contratilidade cardíaca. Outra repercussão sistêmica é a ocorrida nos pulmões, onde a presença da fosfolipase A2 degradará o surfactante e induzirá a atelectasias e derrame pleural, e com isso o nível de oxigênio nas artérias também cairá. Com essa hipoxemia poderá suceder também a insuficiência renal com necrose tubular. Quando a tripsina chega aos rins também agrava a isquemia por ativar o sistema de coagulação, depositando fibrina nos gromérulos e obstruindo-os.

Como dito antes se as enzimas pancreáticas caíssem na corrente sanguínea, órgãos à distância iriam ser atingidos. Além do pulmão e rins, já citados, há também agressões na pele e articulações. Esse evento vai induzir à necrose de tecidos, e como os tecidos necrosados tem grande afinidade por íons de cálcio, muitos pacientes vão cursar com queda dos níveis desse eletrólito, chegando ao ponto de causar tetania.


LABORATORIAL

Em se tratando de avaliação laboratorial, a dosagem de amilase e lipase séricas tem grande valor. Caso o valor de qualquer um dos dois estiver três vezes acima do valor normal, tem-se indicativo de pancreatite aguda.  Caso os níveis estiverem pouco elevados, mesmo no início dos sintomas as patologias associadas serão a perfuração gástrica por úlcera ou doença de Crohn. No entanto, é pertinente saber que essa elevação não é proporcional ao nível de comprometimento pancreático. Se o aumento do nível de amilase sérica persistir por mais de sete dias, pode-se estar diante de um quadro de pseudocisto, principalmente na ocorrência de massa abdominal palpável.

De acordo com a fisiopatologia da pancreatite aguda, os outros exames que devem ser solicitados são: hemograma completo, dosagem de eletrólitos (especialmente o cálcio por sua afinidade com tecidos necrosados), uréia, creatinina, glicemia, proteínas totais e frações, enzimas hepáticas, gama-GT, fosfatase alcalina, bilirrubinas totais e frações e a gasometria arterial seriada nos casos graves.

Quando os níveis de AST e ALT estão aumentados sugere-se litíase biliar, principalmente se as crises de pancreatite aguda são recidivantes.

Para critérios de gravidade são dosados a metamalbumina, a alfa-2-macroglobulina e alfa-1-antitripsina, proteína C reativa, peptídeo ativador de pepsinogênio e elastase granulocítica. A fosfolipase A2, peptídeo ativador de tripsinogênio e peptídeo ativador das carboxipeptidases, testes de IL-6 e 8, além da proteína C reativa já citada são marcadores de gravidade específicos. Pode-se ainda avaliar o paciente 24 horas após o internamento através do sistema APACHE II. Nela uma pontuação de 0 a 6 adquirida a partir da faixa etária é somada aos seguintes critérios: temperatura retal, P.A. média, frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão de O2, pH arterial, sódio sérico, potássio sérico, creatinina sérica, hematócrito, leucócitos e coma, além do terceiro grupo de critérios que sáo doenças associadas.  As alterações fisiológicas são seguidas por existência ou não de doenças associadas. Caso o escore obtiver uma pontuação de 8 ou mais, haverá pancreatite aguda grave.

O raio-x é mais utilizado para diagnóstico diferencial, pois na pancreatite leve ele não vai estar alterado. O USG tem grande valia, pois possibilita a visualização de coleções líquidas, aumento segmentar do órgão, mas os pontos de necrose podem ser de difícil visualização devido à sobreposição das alças intestinais sobre o pâncreas.

A TC de abdome com contraste apresenta positividade de 15 a 30% dos casos de pancreatite leve, mas nos casos moderados a graves a acurácia é adequada. Possibilita a visualização do aumento do volume do pâncreas, coleções líquidas, borramento de gorduras e áreas não captantes de contraste, que são sugestivas de necrose.


TRATAMENTO

O primeiro pensamento após a chegada do paciente é o tratamento dos sintomas. Pode-se utilizar o cloridrato de tramadol na dose de 50 a 100 mg 6/6 horas com infusão lenta. Como a morfina causa contração esfíncter de Oddi, ela deve ser evitada.

Deve haver pronta reposição maciça de volume, com o uso de solução fisiológica ou ringer lactato, pois tal manobra irá favorecer a reperfusão do pâncreas. Caso a pancreatite seja grave deve-se utilizar cristaloides, tais como a albumina ou dextrano. Essa manobra promove nefroproteção e reperfusão pancreática. Caso o paciente curse com oligúria deve utilizar dopamina na dose de 3 a 5 microgramas/Kg/min.

O uso de antibióticos deve ser restrito aos idosos, imunodeprimidos e pancreatite aguda grave. O antibiótico que mais se distribui para o tecido pancreático é o imipenem 500 mg de 8/8 horas, pois ainda é eficaz tanto para aeróbios como anaeróbios, com sua função baseada na inibição da parede celular, além de ter efeito bactericida contra Gran-positivos também. Na segunda opção pode-se utilizar o ciprofloxacino 500 mg 12/12 horas e metronidazol 250 ou 500 mg 8/8 horas, lembrando que para esses casos a utilização da quinolona deve ocorrer por três semanas. No entanto, os estudos indicaram que mesmo diminuído a infecção, não houve diminuição dos índices de mortalidade.

Caso a pancreatite seja de origem biliar, estará indicada cirurgia de colecistectomia precoce, mas apenas após a normalização da amilase sérica.

A alimentação desses pacientes já foi priorizada a nutrição parenteral total, mas estudos recentes já concluíram, com grande margem de segurança, que os riscos de infecção superam os benefícios. O uso de sonda nasoenteral, com introdução na altura ou próximo ao ângulo de Treitz evita a indução da produção de enzimas pancreáticas.


REFERÊNCIAS

LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2011;


COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005;

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