terça-feira, 8 de outubro de 2013

DIFERENCIANDO ÚLCERA PÉPTICA DE CÂNCER DE ESTÔMAGO

A ÚLCERA PÉPTICA

Primeiramente devemos nos ater na definição de úlcera: perda de substância da pele ou mucosa, em particular quando ela mostra leve tendência à cicatrização e evolução crônica; ou simplesmente ferida de cicatrização difícil. Já úlceras pépticas são lesões crônicas no trato gastrointestinal que expõem a submucosa à ação de ácidos gástricos. Geralmente são únicas, de quatro centímetros e de localização predominante em duodeno e estômago (no antro). Outros locais menos acometidos são a junção gastroesofágica, dentro ou adjacente a um divertículo de Meckel com mucosa gástrica ectópica.

Sua ocorrência é dependente do desequilíbrio entre forças que agridem e protegem a mucosa gastroduodenal, não tendo relação direta com hiperacidez, como se pode pensar.  Muito direta é a eficiência dos mecanismos de restituição da mucosa, esta dependente do esvaziamento gástrico, que por sua vez é dependente do fluxo sanguíneo submucoso.  Nesse caso, se o fluxo cai a mucosa é agredida mais rápido do que reconstituída e assim a ferida se cronifica.

Dentre os fatores de risco importantes temos o uso crônico de AINES, pois inibiriam a sínteses de prostaglandinas protetoras da mucosa gástrica, essas indutoras de muco, secreção de bicarbonato e estimuladores da circulação sanguínea subcutânea. O fumo diminui o suprimento de oxigênio da mucosa gástrica. Cirrose alcoólica está ligada tanto a ulcera gástrica, quanto a duodenal. O peso genético parece não ser predominante na gênese da úlcera péptica, mas personalidade e estresse psicológico tem se mostrado de ligação íntima, embora não haja explicação.

FIURA (01): Helicobacter pylori infectando mucosa gástrica.

Uma grade ligação com esse problema é a infecção por Helicobacter pylori (figur 01), esta muito comum, atingindo cerca de metade da população mundial, variando de país e faixa etária, como ocorre na França, onde 7% da população está infectada, enquanto que na Costa do Marfim a prevalência chega a 64% na  mesma faixa etária. No Brasil em São Luiz capital do Maranhão a prevalência chega aos chocantes 96%. Apesar de apenas 10 a 20% dos pacientes portadores de H. pylori desenvolverem a úlcera péptica, essa infecção tem grande importância, pois ocorre em 70% daqueles com úlcera gástrica e em praticamente todos aqueles com úlceras duodenais.  A transmissão é via oral-fecal e oral-oral, sendo que o número mínimo de organismo deve ser de 300.000 unidades, apesar da infecção pós-endoscópica sugerir uma necessidade de um número bem menor. Na cavidade oral o H. pylori fica na placa dentária permanentemente, caso o indivíduo não realize uma boa higiene do local, pois o tratamento sistêmico não erradica o patógeno da cavidade oral. Como a via oral-oral ocorre, o copo previamente utilizado por alguém com o bacilo também se faz importante via de contaminação. a transmissão pós-endoscópica citada ocorre devido ao fato de, por vezes, a desinfecção com álcool ou glutaraldeido a 2% dos materiais utlizados na endoscopia não erradicarem os patógenos por completo.

A relação da presença do H. pylori com úlcera péptica se dá no fato das lesões ocasionadas por sua atividade ser justamente o “motor” para sua sobrevivência, já que a agressão da mucosa traz à superfície substâncias nutritivas para manter o bacilo viável (Figura 02). A regressão da úlcera péptica com o uso de antibióticos contra esse patógeno reforçam essa premissa.






As teorias que tentam explicar essa relação afirmam que embora o Helicobacter pylori não invada tecidos, produz uma intensa reação inflamatória a partir de grande secreção e IL-1, 6, TNF e especialmente a IL-8. Essa bactéria quebra a ureia em produtos tóxicos como cloreto de amônia, produz fosfolipases e proteases, todos agindo de maneira a quebrar os complexos lipídio-glicoproteína da mucosa, deixando-a exposta a agressão pelos ácidos do trato gastrointestinal. Acrescenta-se a isso o simples fato das próprias proteínas do corpo do patógeno induzirem a reação inflamatória através da secreção de IL-1 beta, IL-6, IL-8 e TNF alfa.

Outra teoria é que o H. pylori induz a um aumento de secreção de acido clorídrico, aliado a diminuição da secreção de bicarbonato duodenal. Isso acarreta numa agressão nas primeiras porções do duodeno enquanto o corpo recupera tais locais com a proliferação e avanço de células da mucosa gástrica (metaplasia), mais preparadas contra a acidez, porém facilitadoras da infecção pelo H. pylori. Sua presença crônica ainda inibe apoptose de células adjacentes. Com isso, a permanência de células por períodos maiores que o devido resulta na sobrevivência de células defeituosas e acúmulo de mutações, fatores esses essenciais, inclusive à ocorrência do câncer gástrico.       
 
Uma importante descoberta ocorreu a respeito de cepas positivas para um antígeno, o CagA (fragmento de DNA), indutor de grande resposta inflamatória. A presença de infecção por H. pylori CagA positivo está relacionada a maior número do microrganismo, lesão epitelial mais grave, maior possibilidade de evolução para ulceração e maior risco de câncer gástrico.

Enquanto o suco gástrico atinge a mucosa desprotegida, o H. pylori em nada é agredido pela mesma capacidade de quebrar ureia há pouco citada. Isso ocorre por conta da produção de urease e formação de cloreto de amônia e bicarbonato, que no interior do patógeno funcionam como receptores de íons hidrogênio, cancelando o que seria sua destruição. A entrada de uréia na bactéria é controlada por uma proteína presente na membrana externa chamada urel. Ela é acida-dependente, com maior entrada de ureia no organismo na medida em que o PH se reduz.

A anamnese indica grande relação familiar, pois 30 a 40% dos pacientes tem história positiva.   As manifestações predominantes são desconforto epigástrico, dor em queimação, dor aguda e contínua. Alguns casos o problema é descoberto por uma condição secundária como anemia ferropriva ou hemorragia significativa e perfuração gástrica. A dor predomina à noite, 1 a 3 horas após as refeições, melhorando com alimentos alcalinos. Podem ocorrer náuseas, vômitos, inchaço por flatulência, eructação e grande perda de peso. Quando a úlcera é penetrante a dor é referida nas costas, no quadrante superior esquerdo do abdome ou no tórax, o que pode levar a um diagnóstico errado de cardiopatia.  Ocorre também do paciente ser acordado por dor entre meia-noite e três da manhã, sintoma esse ocorrendo em dois terços dos pacientes, mas ocorrendo também na dispepsia funcional. As úlceras são de difícil resolução quando não tratadas (em média quinze anos), com tendência à cronicidade e recidiva. Os tratamentos disponibilizados hoje geralmente tem boa resposta e raramente há demanda por cirurgias de correção.

As complicações mais importantes são hemorragias, que ocorrem em 15 a 20% dos pacientes, sendo responsáveis por 25% dos óbitos secundários à ulceras. A perfuração ocorre em 5% dos pacientes não tratados e é motivo de peritonite. 30% dos pacientes não tratados também apresentam hemorragia digestiva alta. A obstrução por edema e cicatrização ocorre em 2% dos pacientes e evolui com vômitos intratáveis e cólicas incapacitantes. Dessas três, a hemorragia é o primeiro sinal do problema em 10% dos pacientes e em 30% o primeiro sintoma é a úlcera perfurada.

O diagnóstico é feito por endoscopia digestiva alta, que inclusive permite a realização de coleta de tecido para biopsia, o que identificará com certeza a presença de H. pylori se ali estiver. Pesquisa sorológica de anticorpos anti-HP também tem grande valor, já que a reação inflamatória irá estar ativa na presença do bacilo.


FIGURA 02: presença do H. pilory danificando a mucosa gástrico-intestinal.


TRATAMENTO DA ÚLCERA PEPTICA

Se a gênese do problema é a infecção por H. pylori inicialmente a intensão é restabelecer a mucosa gástrica. Pode-se então utilizar a associação de um inibidor da bomba de prótons, como o omeprazol 20 mg ou pantoprazol 40 mg VO + claritromicina 500 mg VO + amoxicilina 1.000 mg VO, tomados duas de 12/12 horas por sete a 14 dias (esquema preconizado, com resolução da infecção em 80% dos casos). Caso o paciente seja alérgico a amoxicilina deve-se substituir por tetraciclina 500 mg 6/6 h

Outro esquema é o omeprazol 20 mg ou pantoprazol 40 mg 1 vez ao dia, azitromicina 500 mg à noite por três dias e furazolidona 200 mg 8/8 horas, esquema esse utilizado por sete dias.

A claritromicina e a azitromicina pertencem à classe dos macrolídios, inibidores da produção de proteínas pelas bactérias. A claritromicina é semelhante á eritromicina, porém e mais eficaz contra a maioria dos staphiloccoccus e streptococcus.

Caso haja falha do esquema terapêutico- ocorrida em 2 a 3 % dos casos – pode ser utilizado o omeprazol 20 mg 12/12 horas, subsalicilato ou subcitrato de bismuto 120 mg quatro vezes ao dia, metronidazol 500 mg 12/12 horas e tatraciclina 500 6/6 horas.

As úlceras causadas pelo uso de AINES são mais simples e por isso causam menos sintomas. 30 a 40% dos pacientes com esse problema são assintomáticos. Nesse caso a redução do AINE e o emprego do inibidor de bomba de prótons, como o omeprazol 20 mg é eficaz, com o período de tratamento sendo reflexo da resposta do paciente.

Cerca de um a cada mil casos de úlcera péptica é causada pela síndrome de Zollinger-Ellison. É um tumor gástrico que cursa com hipersecreção gástrica estomacal e neoplasia pancreática da linhagem não-beta. Se o paciente é acometido por úlcera única ou múltipla, geralmente nas porções proximais do duodeno, úlceras essas de difícil controle clínico, H. pylori negativas e até recorrentes pós-operatórias, úlceras associadas a diarreia ou cálculo renal e história familiar de tumor de hipófise e paratireoide, o diagnóstico estará bem sugestivo, fechando-o com a pesquisa de gastrina sérica, estando muito mais alto que o normal de 150 para 1.000 pg/ml. Se os níveis chegam a 1.500 pg/ml já se suspeita de metástase.

Enfim aqui o omeprazol também é utilizado, porém na dose de 60 mg ao dia para o resto da vida após o tratamento definitivo, que é a cirurgia. Caso contrário, há grandes chances de recidiva da úlcera.
É importante ainda a hierarquia dos problemas quando se trata de uma úlcera péptica causada por H. pylori. Levando em conta que muitas pessoas possuem o bacilo e não apresentam sintomas é importante que se priorize o tratamento da úlcera com inibidores da bomba de prótons antes mesmo de ter o diagnóstico definitivo da contaminação. Por isso, pode-se instituir o tratamento com omeprazol 20 mg ou patoprazol 40 mg 12/12 horas por duas a seis semanas a depender da resposta do paciente e só então entra-se com o tratamento contra a bactéria, mantendo o inibidor como preconizado nos esquemas acimas especificados.


CÂNCER GÁSTRICO

Assim como na úlcera péptica, o Helicobacter pylori tem grande relação com o câncer gástrico, pois na presença desse bacilo ocorrem processos oxidativos indutores de condições pré-neoplásicas. Tais processos, a depender da cronicidade, podem induzir a mucosa gástrica a evoluir com gastrite atrófica, metaplasia, displasia e neoplasia. Se a infecção pelo H. pylori ocorrer em todo o corpo gástrico desencadeia a atrofia e redução do ácido clorídrico, eventos esses precursores do câncer. Mas esse processo não e fácil, pois menos de 1% dos pacientes com H. pylori desenvolvem o câncer gástrico, relevando o peso dos diversos graus de atividade inflamatória e danos no DNA que descontrolam a proliferação de células.

A saciedade precoce e os vômitos ocorrem por conta da obstrução dos casos de localização antral e por vagarosidade do trânsito gástrico. Os pacientes que referem dor epigástrica não melhoram com alimentação, nem com o uso de antiácidos. Na realidade a ingesta de alimentos induz o atrito destes com as células do tumor e ocasiona sangramentos e dor. Lembrando-se da relação inferior do estômago com as diversas estruturas, incluindo o pâncreas, entende-se a dor lombar como um sinal de metástases nesse órgão. Se a dor é no quadrante direito as metástases alcançaram o fígado, sendo seguido de icterícia e febre. Já a disfagia é sinal de localização do carcinoma na junção esofagogástrica ou mesmo no fundo. Como pode haver sangramento nas lesões, anemias podem ocorrer e por conta disso o paciente refere mal-estar, cansaço e fraqueza.

No início da doença o exame clínico pode nada apontar, mas no fim o paciente apresenta-se caquético e em 50% dos casos é encontrada massa palpável na região epigástrica. A depender de onde ocorram metástases pode ocorrer esplenomegalia ou hepatomegalia. Como o epitélio do estômago vai estar comprometido, e sendo este local de produção de vitamina B12, o paciente pode evoluir para anemia perniciosa e megaloblástica. Tem-se aqui então uma diferença entre a úlcera péptica e o câncer gástrico, pois ao hemograma a anemia ferropriva vai induzir à microcitose enquanto que a megaloblástica evolui com macrocitose.
Dentre os exames utilizados na detecção do câncer gástrico estão: 1- endoscopia digestiva, com sensibilidade de 60 a 84%; 2- teste do pepsinogênio sérico, com sensibilidade de 40 a 80%; 3- estudo radiográfico com contraste, este sendo considerado o padrão ouro, detendo uma sensibilidade de 60 a 80% e especificidade de 80 a 90%. 


REFERÊNCIAS

LADEIRA, Marcelo Sady Plácido; SAVADORI, Daisy Maria Fávero; RODRIGUES, Maria Aparecida Marchesan. Biopatologia do Helicobacter pylori. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial. V. 39. N. 4. P. 335-342. Rio de Janeiro, 2003.

Federação Brasileira de Gastroenterologia. Úlcera péptica. Projeto Diretrizes. Disponível em: http://www.projetodiretrizes.org.br/projeto_diretrizes/106.pdf. Acessado em: 05 de outubro de 2013.

COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.

LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2011.

KODAIRA, Márcia S.; ESCOBAR, Ana Maria Ulhôa; GRISI, Sandra. Aspectos epidemiológicos do Helicobacter pylori na infância e adolescência. Revista de Saúde Pública. v. 36. n. 3. p. 356-369, 2002.
COIMBRA, Felipe José Fernádez. Diagnóstico precoce em câncer gástrico – importância, desafios no Brasil e a experiência oriental. Revista Onco&. P. 26-29. Mai/jun, 2012.

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