terça-feira, 11 de setembro de 2012

CONTO - CONSTRUÇÃO


LIBERDADE

A Liberdade vagava pelos campos longos e verdes quando foi chamada. Saliências subiam do chão para apontar para o céu na tentativa de formar grandes montanhas verdes aos pés, brancas de neve no alto. A Liberdade estava sozinha, voando rápida, circulando o horizonte até onde o verde chegava. Na sua função de percorrer o mundo observando o que de novo pudesse encontrar, ela recebeu de bom grado a missão. Deveria ser elemento a constituir um novo ser. Precisava viajar até um determinado local para contribuir a seu modo para a construção de uma vida, uma história.
A viajem era longa e para completá-la precisaria passar pelo seu pior inimigo: a Privação.  Seria difícil, mas deveria ter coragem para seguir em frente e assim fazer por merecer seu chamado. E assim lá estava ela. Sofreu a tentativa de ser barrada entre os dois últimos campos. O mesmo lugar onde nascera. Era um local quase plano, com um estreito caminho de terra vermelha ao centro, delimitado por duas enormes lagoas inquietas, das quais se erguiam duas lindas imagens femininas gregas, levitadas acima de onde a água podia alcançar.
A Privação se posicionou à sua frente, ergueu os braços e gritou: Eu não deixarei você passar – sua voz era firme e falida ao mesmo tempo.  Mas a Liberdade era acostumada a percorrer florestas por dias contínuos sem nunca pestanejar, ou diminuir sua admiração pelas coisas de Deus.  O escapulário em seu pescoço provava isso.  Por tudo a Liberdade ganhou a velocidade do vento e antes que a Privação pudesse reagir ela correu rápida por sobre as águas sem precisar da mínima investida.
De lá foi para o lugar marcado encontrar-se com os outros três. Havia um círculo de pedras deitadas ao chão com uma erguida ao centro. Ela foi a última a chegar. Então aproximou-se e disse: Eu sou a Liberdade, e com toda a honra cedo meus defeitos e virtudes para essa construção. E ajoelhou-se erguendo o escapulário antes em seu pescoço, dizendo aos outros três:
- Eu prometo que serei a pura disposição, e que estarei junto com vocês para todo o sempre ou até que seus fins sejam também o meu fim.
E então...

AUTÊNTICA
A Autêntica era uma energia fracionada que emanava dos úteros de todas as mulheres. Ela tinha várias personalidades, mas todas compreendiam sua importância de dar a cada um, faces distintas. Sabia também que mesmo com aquele chamado não podia deixar seu local de vivência, pois dela dependiam as vidas ainda por vir. Então Autêntica decidiu doar uma ínfima parte de sua energia em cada útero para no fim formar uma única, grande e forte, capaz de chegar ao local marcado. Foi um processo rápido.  Aconteceu no céu onde seu inimigo, o Plágio, não pudesse testemunhar.  Até ali tudo foi tranqüilo, no entanto ela sabia que o encontro era inevitável, e se aproximava, pois não podia se manter no alto por muito tempo.
Autêntica vislumbrou o horizonte a percorrer, se posicionou, e deixou-se cair planando sobre as nuvens o máximo que pôde. Eram tantas as formas brancas, invocando a nostalgia sobre as várias infâncias que teve. O vento era frio e agradável, quase tão ao extremo quanto seu poder criativo. Caindo viu as nuvens ficarem cada vez mais esparsas até que sobraram apenas alguns vapores e a visão da terra lá embaixo. Ainda não havia prédios, nem mesmo cidades, apenas alguns povoados indígenas que teimavam em não desaparecer. Logo passou a planar junto ao chão chamando a atenção do Plágio, que ciente da importância da missão passou a segui-la como um parasita.
O Plágio também era rápido e por muitas horas acompanhou Autêntica. Insistente, comensal, o Plágio desejava encontrar o local Marcão para estragar com sua inveja o novo ser. No entanto Autêntica, esperta e tranquila, esperou com paciência o primeiro vacilo do inimigo para penetrar nas flores e através do pólem viajar ao vento despercebida, até que estivesse segura para voltar à sua antiga não-forma e assim alcançar o lugar marcado.
Logo na entrada havia um caminho feito de britas que inexplicavelmente não machucavam os pés de ninguém. O círculo de pedras estava logo adiante, e ajoelhada ao centro Impetuosa, sozinha, colocava seu cetro sobre a grande pedra. Assim que se levantou Autêntica tomou o seu lugar rente a ela, ajoelhando-se e dizendo:
- Eu sou Autêntica e com toda a honra cedo meus defeitos e virtudes para essa construção.
Então rasgou a manga direita da sua camisa e a colocou ao lado do cetro.
- Eu prometo que serei a pura disposição e que estarei junto com você para todo o sempre ou até que nossos fins sejam os mesmos.

IMPETUOSA
A Impetuosa apoiada em seu cetro, estava sentada sobre a barra de segurança erguida na extensão da borda do prédio mais alto. Era calada, semblante sério como se irritada, ombros marcados em brasa com o símbolo do infinito. Era noite e se dependesse dela passaria todo o tempo ali olhando as luzes se movendo lá embaixo. Estava angustiada. Sentia em seu âmago que algo iria acontecer. E foi no erguer sua mão repleta de calos ao rosto quando soube que teria algo para fazer, algum lugar para ir. Olhou para a Lua e disse: Eu aceito.
Permaneceu escondida por anos e só agora resolveu sair de sua auto prisão. Era o que a ocasião pedia. Além disso, já havia pago pelos seus erros, por isso não necessitava permanecer na casa de cubos.
No alto do prédio abaixo, o pára-raios era perfeito para apoiá-la. Tinha pressa. Planeou um longo caminho até olhar para o horizonte com olhos instintivos e perceber que a Depressão a observava atentamente. Impetuosa lançou seu olhar enraivecido e sem muito analisar saltou pra o prédio vizinho onde uma placa trazia as letras NE escritas. Ela foi até lá num único salto, mudando seu curso pra não bater de frente com a Depressão. Já se imaginava correndo por sobre os prédios, iluminada pela poluição dos carros lá embaixo, seu oponente se erguendo veloz atrás dela tentando alcançá-la e assim impedir o que teria de fazer.
Mas isso não aconteceu. Quando mais perto chegou da Depressão percebeu que chorava silenciosa. Então ela cessou seu avanço e num ato totalmente contraditório foi até lá. A Depressão a fitava com os olhos vermelhos e inchados quando apenas um metro os separava. Porque você chora?, perguntou Impetuosa. Daí foi-lhe erguida uma mão e com ela um convite à tristeza e solidão já conhecidas. Dizia que o mundo era ruim, e o fato das coisas não acontecerem como planejamos nos deturpava, nos feria e por isso aquela seria uma postura para se proteger. A Depressão se vestia de Negro com uma camisa sem detalhes, discreta o suficiente para fazer do escuro o perfeito esconderijo. A Impetuosa sentiu sua intenção e por se opor à viajem ela negou. Impetuosa fechou os olhos por uns instantes e em sua piedade ergueu também o braço para que seu oponente o segurasse, para assim como ela se transformar em algo com objetivos na vida, com motivos para caminhar em frente mesmo com as dificuldades.  Para lembrar que seria possível retirar força de cada obstáculo, e que para os seguidores dessa filosofia, após certo tempo, a nada se permitiam abater. A Impetuosa olhava para os céus e via Deus, enquanto a Depressão olhava para cima e subindo no parapeito não vi nada.
Impetuosa a seguiu certa de que conseguiria atrair seu oponente para a luz, e os dois ficaram ali junto às correntes de ar e à imagem do asfalto distante, com os braços estendidos um para o outro. Outra lágrima caiu do olho esquerdo da Depressão e junto com ela seu corpo. Impetuosa então, na sua nobreza, se jogou no intuito de impedir qualquer morte. Desistir não fazia parte de seus planos.
O vento se fazia forte, a distância para o chão diminuía, as janelas espelhadas passavam com velocidade absurda. Foi quando Impetuosa segurou a mão de sua não-inimiga, e cravando seu cetro no concreto barrou a investida. Logo ao chegarem ao chão, a Depressão havia desaparecido e o caminho estava livre para chegar ao local marcado. Isso aconteceu ao amanhecer quando o nevoeiro rasteiro cobria a parte inferior das pedras dispostas em círculo. A Impetuosa estava sozinha, mas a confiança nos seus a tranqüilizava. Eles chegariam e assim como ela fariam o que sabiam ter de fazer. A cada um cabia um ato e o seu já estava sendo feito. Passou pela pedra marcada com a espada dos seus ancestrais, seguiu até a do centro ajoelhou-se ao lado e colocou seu cetro sobre ela.
- Eu sou impetuosa e com toda a honra cedo meus defeitos e virtudes para essa construção. Prometo que serei a pura disposição, e que estarei com os outros para todo o sempre ou até que seus fins seja também o meu.
Daí olhou para o lado. Alguém estava chegando.

LENDA E LUZ
A Lenda e o Luz olhavam o mar quando foram chamados. Eram irmãos e por isso eram dois e um só ao mesmo tempo. Entre eles a palavra eu nunca fora pronunciada, apenas nós. Assim os dois teriam um só lugar para ir, um único objetivo. Ao seu caminho estava o mais impiedoso e destrutivo dos inimigos: o Fúria. Imponente e tempestivo, supremo mesmo para os dois. Eles sabiam que o Fúria não deveria ser combatido diretamente.
Esperaram a noite e atraíram propositadamente o Fúria, que investia com força contra os dois. Mas a Lenda e o Luz não foram apressados.  Tinham tudo o que precisavam para vencer não só ali, mas em todas as batalhas a seguir. A Lenda era rápida e silenciosa como as águias que planam longe de todos. O Luz era quase o próprio caminho.  Era o discernimento, o bom julgo, a sensatez. Enfim, era o guia de si e da irmã.
Acabaram correndo do Fúria entre as árvores da grande e escura floresta.  Uma floresta labirinto, com as sombras jogadas ao chão e a falta de horizonte à frente. Seguindo-os o Fúria fazia questão de não ser discreto. De mostrar sua força derrubando tudo em seu caminho, sem imaginar que tudo o que fazia era sinalizar onde os outros não desejavam estar. Com sua força erguia os braços e derrubava as árvores como se fossem cipós. Ele era rápido. Houve um momento em que se aproximou dos dois, mas a paciência os salvou. E onde ela existe o Fúria não há. No fim de agitado, instintivo e impensado se perdeu, enquanto o Luz achava o caminho com a sabedoria necessária para perceber que chegar onde se quer exige que se vá em frente, ainda que tenha de dar alguns passos para o lado. Quanto ao Fúria só lhe restou a lembrança de uma Lenda que sabia em quem confiar.
Na entrada do lugar marcado havia uma estaca erguida com um véu na ponta, balançando ao vento.  Na frente Impetuosa e Autêntica de pé, com os braços voltados para trás, os aguardavam ansiosamente. Balançaram a cabeça suavemente num sinal afável de boas vindas. Daí penetrando no círculo de pedras foram se ajoelhar ao centro para doar uma gota do sangue de cada um, e assim falar simultaneamente:
- Nós somos a lenda iluminada e com toda a honra cedemos nossos defeitos e virtudes para essa construção. Prometemos que seremos a pura disposição, e que estaremos juntos com os outros para que até mesmo nossos fins sejam os mesmos.

???  ???

Todos de mãos dadas fizeram outro círculo ao redor da pedra-mor e num gesto de amizade, concentrados em suas boas intenções, reuniram suas energias recheadas com seus defeitos e virtudes, para subirem aos céus e de lá irem até uma grandiosa mulher, a qual todos chamariam de mãe. Eles se dispuseram a se transformar em fruto para originar outra grande mulher e amiga. Alguém com ideais de liberdade, autêntica, impetuosa em seu gênio e iluminada em Deus, para que em nossos pensamentos seja uma lenda chamada LILLA.
L(liberdade); I(impetuosa); L(lenda); L(luz); A(autêntica).


JAIRO LEÃO 16/08/07


REFERÊNCIA
Minha Imaginação.

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