sábado, 26 de abril de 2014

MANEJO HORMONAL DO SANGRAMENTO UTERINO DISFUNCIONAL



ALGUNS CONCEITOS

Sangramento uterino corresponde a 21% das queixas ginecológicas. 20% das pacientes são adolescentes e 50% estão dentro da faixa entre 40 e 50 anos. Mas antes de adentrar na área do sangramento disfuncional, é necessário compreender que o ciclo menstrua normal vai do primeiro dia de sangramento até um dia anterior à próxima menstruação, com intervalo de 25 a 35 dias e volume de 100 a 150 ml de sangue, ou o correspondente entre 8 e 12 absorventes por mês. Quando ocorre um aumento no número de dias de sangramento em relação à quantidade rotineira da mulher tem-se a hipermenorragia, sendo que o contrário, a diminuição, é denominada oligomenorreia. O primeiro termo costuma ocorrer em miomatoses e o segundo na menopausa. Caso o ciclo menstrual tenha uma duração inferior a 15 dias tem-se a polimenorreia, e quando esse sangramento não tem padrão o quadro é denominado de metrorragia, geralmente ocorrido nos cânceres uterinos. Já Espaniomenorreia se refere ao contrário, com o ciclo menstrual ocorrendo num período maior que 45 dias, mas se esse período for maior de 60 dias, passa a ser denominado de amenorreia. Dismenorreia é quando a menstruação ocorre junto com fortes sensações dolorosas, e menóstase se refere à supressão abruta da menstruação, geralmente ocorrendo por traumas psicológicos importantes.

Dito isso pode-se conceituar a hemorragia uterina como um sangramento excessivo relacionado ou não com menstruação, e caracterizada pela perda sanguínea pontual aumentada, assim como também a perda em pequenas quantidades por muitos dias.


FISOPATOLOGIA

O sangramento uterino disfuncional possui um complexo de fatores etiológicos. Dentre as causas hormonais podemos citar a ausência ou diminuição da progesterona, que é mais comum na puberdade e nos anos antecedentes à menopausa. Como o aumento da progesterona é necessário para manter o útero proliferativo, a condição de baixa da progesterona precipita a descamação precoce das células endometriais e com isso há encurtamento do ciclo menstrual. Como resultado a mulher irá apresentar o sangramento pré-menstrual, manifestado como sangue escurecido ou em borra de café. Alterações nos níveis de estrogênio também podem acarretar em endométrio proliferativo além do normal e com isso o sangramento também aumenta. Alterações nesses dois hormônios concomitantemente ocorre quando a mulher faz uso de anticontraceptivos orais combinados, resultando em sangramento em geral de pequena quantidade.

A hemorragia uterina também pode estar envolvida com distúrbios da coagulação e geralmente é o primeiro sinal. Ao contrário do sangramento por contraceptivos orais, aqui a perda de sangue pode ser de grande monta e causar morte da indivídua. Causas obstétricas também podem levar ao sangramento, sendo mais frequente o aborto, seguido de gestação ectópica.

O sangramento uterino disfuncional pode ser classificado em duas categorias gerais: ocorridos em mulheres com ovulação ativa e mulheres com ciclos anovulatórios. Os ciclos ovulatórios, como o próprio nome diz ocorre nesse momento, com o sangramento durante cerca de três dias. Pode ser percebido pela modificação da mucosa vaginal característica do período , assim como a secreção vaginal clara misturada com sangue. Possivelmente é secundário a formação de trombos devido a atividade estrogênica, ou ainda por rotura folicular.

A descamação irregular do endométrio se apresenta como sangramento abundante e regular. Caso a biopsia do endométrio seja realizada no quinto dia de sangramento, será evidenciado um endométrio com áreas de maturações diversas, evidenciando regressão retardada do corpo lúteo do ciclo anterior, ou seja, no ciclo atual há hormônios do ciclo anterior mantendo a maturação de locais do endométrio que deveriam ter sido descamados. A persistência do corpo lúteo também precipita uma condição denominada de sínbdrome de Halban, quando a mulher apresenta atraso menstrual seguido de perdas de pequeno volume, dor em baixo ventre e massa em trompa, o que induz aos desavisados á confusão com gravidez ectópica. A evolução  ocorre sem maiores problemas e por isso raramente a síndrome é percebida.

O sangramento anovulatório corresponde a 80% dos casos, ocorrendo em sua maioria nos extremos da vida reprodutiva. Ocorre geralmente por mecanismo inadequado de feddback que comanda a regularidade da menstruação. Como consequência a paciente vai apresentar dericiência de estrogênio e por isso o endométrio não prolifera como deveria porque descama antes do que deveria. Como consequência o endométrio cresce sem o suporte estrutural adequado, flutuando entre proliferação e descamação, tornando-se frágil e suscetível a soluções de continuidade e consequentemente ao sangramento. Outro problema é a queda na tortuosidade das artérias espiraladas, retardando a hemostasia. A consequência disso tudo são sangramentos completamente irregulares.


QUADRO CLÍNICO

Nesses casos a história é bem caracterizada. A paciente refere sangramento intenso com aspecto de sangue vivo ou em coágulos. Pode também referir sangramento menstrual com duração de sete a dez dias, em grande volume nos primeiros dias e com aspecto gradativamente mais marrom na medida em que o mesmo vai diminuindo. A sinusiorragia também pode ser relatada, sendo o sangramento após a relação sexual, com odor fétido e corrimento sanguinolento ou purulento.

Procede-se então com a anamnese e exame físico. É imprescindível questionar a paciene sobre o inicio do sangramento, intensidade, número de absorventes necessários, características do sangue e sobre antecedentes clínicos.

No exame físico observa-se sinais de anemia, aferição dos sinais vitais, presença de sangue na região genital, aspecto da vagina e do colo uterino e odor. O toque vaginal deve ser utilizado para avaliar a consistência do colo uteriono, assim como seu tamanho, presença de massas e a permeabilidade do orifício uterino. Com essa manobra também é possível analisar os ovários. Caso sejam identificadas massas que determinam a suspeição de câncer, deve-se realizar também o toque retal para avaliar infiltrações.


DIAGNÓSTICO

A primeira ação para definir o sangramento disfuncional é afastar o sangramento orgânico. Depois é necessário definir se a paciente está ou não ovulando através de anamnese e dados físicos, tais como o acompanhamento da temperatura basal, cristalização do muco cervical e dosagem de progesterona. A idade é muito importante, pois os sangramentos na puberdade tendem a ser disfuncionais. Obesidade, baixo peso e hirsutíssimo podem dar ideia de uma paciente com distúrbios endócrinos. Caso pacientes nessa idade apresentem sangramento abundante é necessário pesquisar distúrbios de coagulação.

OS EXAMES NECESSÁRIOS SÃO:

Hemograma completo, prova de coagulação (TP, TTPA, tempo de sangramento, dosagem de fibrinogênio e fator VIII), FSH, LH, estrogênios totais e progesterona, Beta-HCG.

Os exames de imagem são muito úteis. A USG pélvica ou transvaginal pode identificar o sangramento por causas não-funcionais, apontando a presença de tumores e gravidez. Se identificada alguma massa, solcita-se a histeroscopia e biopsia do endométrio pra avaliação do tecido e potencial confirmação de carcinoma.


TRATAMENTO

Antes de qualquer informação deve se ater que sangramento disfuncional é sempre corrigido com hormônios. Caso os hormônios não promovam melhora, o sangramento é dito orgânico, ocorrendo por outras causas, tais como cânceres.

O tratamento deve suceder ao estudo e definição diagnóstica. De antemão, nos casos de hipovolemia ela é a primeira ação a se pensar. Hemoglobina inferior a 7 mg/dl, ou de sete a dez com comprometimento do estado geral ou sangramento abundante, exigem internação. Deve ser infundido solução fisiológica para expansão de volume com prescrição de 10 mg de acetato de noretisterona (primolut-nor) por via oral de 8/8 h por três dias. Geralmente o sangramento diminui substamcialmente ou para em 48 horas. Depois a dose do primolut-nor deve ser reduzida para 20 mg ao dia por mais três a cinco dias e dose de 10 mg por mais 20 dias. Daí começa-se a alternar dias de uso para a completa retirada a partir da resposta do paciente. A suspensão abrupta não deve ocorrer, e no momento do desmame um sangramento deve ocorrer, sendo discreto e sem necessidade de intervenções adicionais.

Se essa manobra não for suficiente para parar o sangramento, ainda internada a paciente deve receber estrogênio oral na dose de 1,25 mg por via oral ao dia, diminuindo progressivamente até alcançar 0,625. O tratamento também pode começar pelo estrogênio e caso o sangramento continue pode-se introduzir o primolut-nor ou 10 mg de medroxiprogesterona. O seguimento pode ser em casa, com a paciente fazendo uso de um comprimido de etilenestradiol na dose de 0,035 mg de 8/8 h por dois dias e a partir daí fazer uso de um comprimido ao dia por 14 dias. Essa dosagem de etilinestradiol pode ser conseguido através de contraceptivos orais comuns como o Selene. Como o estrogênio aumenta a espessura do endométrio, caso ele venha a ser utilizado individualmente, na sua retirada é costumeira um sangramento significativo. Assim, o tratamento combinado como primolut-nor ou etilinestradiol é o mais indicado. Após a alta hospitalar a paciente também deverá seguir com o uso de sulfato ferroso por conta da perda contínua de sangue. O uso deve se no mínimo de trinta dias.

Nas hemorragias sem repercussão hemodinâmica o tratamento pode ser realizado em domicílio, à base de noretisterona (primolut-nor) 10 mg via oral ao dia, associado a algum AINE como a nimesulida 100 mg de  12/12 horas. Esse anti-inflamatório deve ser interrompido com o cessar do sangramento, mas o primolut-nor deve ser mantido por 30 dias ou nesse período deve ser utilizado o ACO com etilinestradiol.

O tratamento de manutenção nos casos de diminuição ou ausência de progesterona deve ser realizado com o primolut-nor na dose de 10mg entre o 15° e 25° dia do ciclo. Se o problema envolva apenas ciclos irregulares o acetato de medroxiprogesterona é suficiente na dose de 5 a 10 mg por dia no mesmo período. Esse medicamento também deve ser a primeira escolha em pacientes obesas.

Se a doença base é a diminuição de estrogênio o recomendado é o uso de estrogênio nos primeiros 15 dias do ciclo e a partir daí acrescentar a medroxiprogesterona parando o uso como antes citado, no 25° dia do ciclo. O medicamento a ser acrescentado também pode ser a acetato de ciproterona. A medroxiprogesterona pode ser encontrada e prescrita no medicamento provera 10 mg, e a ciproterona pode ser encontrada emc contraceptivos como o diane 35.

Nos sangramentos em ciclos menstruais sem ciclicidade, há dois caminhos: se a paciente não  tiver vida sexual ativa, prescreve-se a medroxiprogesterona por dez dias a partir do 15° dia do ciclo;  aquelas com vida sexual ativa pode ser prescrito um anticoncepcional oral com maiores quantidades de etilinestradiol (30 a 35 microgramas), tais como o Selene, tantin ou o Tâmisa.


REFERÊNCIAS

Machado, Lucas V. Sangramento uterino disfuncional. Arquivo Brasileiro de Endocrinologia Metabólica. V. 45. N4. Agosto, 2001.

CRUZ, T. S.; R. Simões. Sangramento Uterino Disfuncional em Mulheres Usuárias de Contraceptivos de Progestagênio: Tratamento. Projeto Diretrizes. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. Março, 2010. Disponível em: http://www.projetodiretrizes.org.br/diretrizes10/sangramento_uterino_disfuncional_em_mulheres_usuarias.pdf.


LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2009.

terça-feira, 15 de abril de 2014

DENGUE: UM MECANISMO INTELIGENTE

EPIDEMIOLOGIA BREVE

A dengue é uma doença causada por um dos quatro sorotipos do flavivírus, DENV 1, 2, 3 e 4, e seu principal vetor de transmissão é o artrópode Aedes aegypti. Por ano são contabilizadas mais de 100 milhões de casos de dengue clássica no mundo e mais de 500 mil de casos de dengue hemorrágica. No Brasil, apenas no ano de 2010, até o dia 03 de julho, já haviam sido notificados 942. 153 casos de dengue, com o Estado do Acre sendo o mais atingido. 


DENGUE E O SINERGISMO DO NOSSO SISTEMA IMUNOLÓGICO

A dengue é uma patologia de eventos eminentemente inflamatórios. No homem possui um período médio de incubação de 5 a 6 dias, sendo infectivo um dia antes do aparecimento da febre até o sexto dia da doença. Após adentrar no organismo o vírus da dengue tem nos linfonodos seu primeiro sítio de replicação. O vírus estão se direciona para os tecidos musculares, onde posteriormente é englobado pelo macrófago, seu principal sítio proliferativo. A mialgia e inclusive a dor ocular, se justificam justamente pelo tropismo pelos músculos gerais e oculomotores. A dor ou qualquer das manifestações ocorridas na dengue ocorre por conta da intensa resposta inflamatória contra o capsídeo do vírus, especificamente falando da proteína E, um componente do capsídeo viral. A resposta inflamatória intensa ocorre por meio de um espasmo vascular na intensão de levar plasma aos tecidos infectados e com eles as células de defesa. Por vezes esse evento ocorre com grande intensidade, arrastando consigo hemácias e manifestando na pele as equimoses tão características da dengue.

FIGURA 01: Momento em que as células endoteliais dão passagem para o plasma, que então carregam as células de defesa até o tecido infectado. 

A proteína E possui três porções: uma região central contendo um radical amina; uma segunda região com predominância de dímeros; e uma região que contém o C terminal, este sendo o responsável pela determinação dos diferentes tipos de vírus do dengue. Os dímeros da proteína E também são os responsáveis pela fusão do capsídeo viral com a membrana dos macrófagos quando o vírus está no seu interior. Após a endocitose do vírus as vesículas acidófilas se dirigem para sua destruição, mas assim que a proteína E entra em contato com o PH<6,5 ela muda sua conformação e termina por se fundir com a membrana do endossomo, permitindo que o vírus adentre no citoplasma ao invés de ser destruído.

A entrada do flavivírus nos macrófagos também ocorre por ligação com a porção Fc dos anticorpos ligados à parede dessas células, para então se fixarem na porção Fc gama ligada diretamente à membrana do macrófago. Essa porção deveria ativar macrófagos contra outros agentes infecciosos, mas em vez disso, há o fenômeno de facilitação por anticorpos (ADE), pois pela porção Fc gama o vírus também conseguirá adentrar no citoplasma da célula.

Outras duas proteínas presentes no capsídeo viral capazes de induzir resposta imunológica são a NS1 e NS3. A NS1 está relacionada com a lise total da célula com o vírus no seu interior, pois a defesa do organismo ocorre com a destruição dos macrófagos infectados. Linfócitos T citotóxicos são ativados contra a NS3, e os linfócitos T helper são ativados pela proteína E, NS1 e NS3. Após o início dos sintomas as IgM são detectados no 4° dia, com pico entre o 7° e 8°, quando então começam a declinar. As IgGs também se elevam no quarto dia, mas o pico ocorre em duas semanas e se mantém detectáveis por vários anos, conferindo imunidade permanente ao tipo previamente infectante e por aproximadamente seis meses aos outros tipos.

Importante também é compreender a existência de dois tipos de reação imune contra o vírus do dengue: a primeira reação ocorre quando os linfócitos T helper estimulam o ataque das células de defesa contra as células infectadas destruindo-as; a segunda reação e dita paradoxal, onde o próprio hospedeiro sai perdendo com a resposta imune, podendo inclusive evoluir com síndrome do choque do dengue. Esse tipo de resposta pode ser observada em pessoas previamente infectadas, ou em crianças abaixo de um ano, imunizadas pela infecção materna durante o período gestacional, quando anticorpos trafegam entre o binômio mãe-feto. Nessa reação o extravasamento plasmático pode levar o paciente a uma condição de baixo volume vascular e queda de pressão arterial com potencial fatal, configurando a o dengue hemorrágico/síndrome do choque do dengue (SCHD).

FIGURA 02: síndrome do choque do dengue com manifestações hemorrágicas extremas.


Em 1981 ocorreu uma epidemia de dengue hemorrágica em cuba pelo tipo dois, quatro anos após uma epidemia benigna tipo um, o que permitiu concluir que a infecção nessa sequência seria 100X mais grave que a reinfecção por tipo 1.

Como dito antes, existe uma reposta imune paradoxal, quando o indivíduo também sai perdendo, evento esse envolvido na gênese do choque. Quando os macrófagos sinalizados como infectados são lisados por linfócitos, terminam por liberar a tromboplastina, ou fator tecidual comandando eventos pró-coagulantes. Como as IL-2 e IL-8 também são liberadas, vai haver secreção de histamina pelos basófilos, aumentando a permeabilidade vascular, imitando os eventos hemorrágicos da CIVD. A IL-6 também vai estar elevada na SCHD, estando relacionada com a febre.

Foi identificado também um fator citotóxico liberado dos linfócitos T helper que está comprovadamente associado com o extravasamento de líquidos do meio intravascular para o interstício por induzir a secreção de histamina, além de destruir outros linfócitos T, macrófagos e megacariócitos. Esse fator citotóxico se configura um fator de gravidade, juntamente com as variações na organização da proteína E. Tais variações nessa proteína proveriam o flavivírus com melhor capacidade de se ligar às superfícies e maior resistência contra outros linfócitos.

QUADRO CLÍNICO

O quadro varia desde sintomas gerais de gripe até eventos hemorrágicos mais graves, o que vai depender dos fatores de risco tais como: cepa, sorotipo viral, estado nutricional, estado imune e constituição genética do indivíduo. O período de incubação do vírus é de quatro dias. Podem ocorrer a febre branda e máculas na pele, não dando muitos sinais da patologia em curso, mas também pode ocorrer a febre de mais de 39°C que pode persistir de cinco a sete dias e apresentar um curso bifásico de 12 a 24 horas. A falta de apetite será um dos fatores que predispõe os pacientes à anorexia. Pode ocorrer artralgias, dor retororbitária, mialgias, hepatomegalia, prostração, exantema, prurido cutâneo e dor abdominal, este último sendo um sinal de agravamento. Caso nenhum desses sinais seja doloroso os dados laboratoriais podem se restringir a baixa discreta de plaquetas e discreto aumento de enzimas hepáticas. Esses sinais, assim como a febre, são autolimitados, com exceção da prostração, que pode permanecer por semanas. Um sinal que ocorre em sua maioria nas infecções primárias é a erupção cutânea, entre o segundo e quinto dia após o aparecimento da febre, sendo apenas macular ou maculopapular.

Quando se trata de dengue hemorrágica, os sintomas começam como uma dengue clássica, mas por volta do terceiro dia aparecem as manifestações hemorrágicas, tais como petéquias em tronco. Caso o paciente tenha instalado algum acesso venoso, esse pode sangrar ou ainda pode haver sangramentos em nariz e gengiva. Depois de sete dias, justamente quando ocorre a defervenscência, aparecem os sinais de insuficiência circulatória, fadiga, suor frio e manifestações hemorrágicas por conta do extravasamento vascular, podendo deixar a pressão e pulso indetectáveis.

Na maioria dos casos a dengue hemorrágica é precedida de sinais de alarme. São eles:  dor abdominal intensa, vômitos persistentes, hipotensão postural e arterial, pressão de pulso menor que 20 mmHg, pulso rápido e filiforme, hepatomegalia dolorosa, hemorragias, extremidades frias, cianose, agitação ou letargia, anúria, diminuição repentina da temperatura e aumento repentino do hematócrito.

O comprometimento hepático profundo é um achado comum nos casos fatais, sendo causados porque o vírus induz a apoptose dos hepatócitos. Esse comprometimento hepático é mais profundo quando a infecção se dá pelos tipos DENV 3 e 4. A dengue visceral é uma variante da dengue que compromete também o coração que foi identificada em 2007 na fronteira do Mato Grosso com o Paraguai, induzindo ao comprometimento dos fígado, pulmões e cérebro. O comprometimento do SNC se desenvolve através da síndrome de Guillain Barré, mielite e paralisia de nervos cranianos.  

O diagnóstico laboratorial pode ser solicitado como IgM e IgG para dengue, caso o paciente já tenha mais de quatro dias após o aparecimento dos sintomas. Deve-se atentar para os casos de infecção secundária, pois se no paciente previamente imunizado pelo vírus da dengue, ou até por outros tipos de flavivírus, pode ocorrer reação cruzada e falsos-positivos. O IgA também pode ser solicitado, pois tem quase tanta efetividade quanto o IgM. O primeiro se positiva com 4,6 dias, e o IgM se positiva com 3,6 dias.

As reações cruzadas são a explicação para diversos casos falso-positivos, além de existirem também os falsos- negativos. Por isso deve-se solicitar o anti-NS1, que atualmente é o exame mais sensível para a detecção da dengue, tendo uma sensibilidade de 93,8% e especificidade de 100%. A reação em cadeia de polimerase (PCR) também se faz muito útil, apesar de não ser muito utilizado na prática, possibilitando a detecção precoce da presença do DNA complementar ao RNA viral, inclusive possibilitando a detecção do sorotipo e subsorotipos do vírus.


CLASSIFICAÇÃO E TRATAMENTO

A dengue pode ser dividida em quatro grupos: A são os casos suspeitos por conta do quadro limitado a sintomas gerais sem manifestações hemorrágicas nem prova do laço positiva; B são casos suspeitos com prova do laço positiva e manifestações hemorrágicas espontâneas discretas sem repercussões hemodinâmicas; C são casos com presença de sinais de alarme, independente da presença de hemorragias; D são casos de pressão arterial convergente, hipotensão ou choque, podendo ou não ter manifestações hemorrágicas.

O tratamento é como segue: A, hidratação oral de 60 a 80 ml/Kg/ dia sendo 1/3 de soro de reidratação oral (SRO) e 2/3 de líquidos em geral. Apesar desse tratamento ser domiciliar o paciente deve ser orientado ao retorno no momento da defervescência; B, o paciente deve permanecer na unidade fazendo uso de sintomáticos e reidratação oral assistida. A depender do paciente o tratamento pode ser ambulatorial com hidratação oral de 80 ml/Kg/dia. Se o paciente homem estiver com hematócrito acima de 50% e mulher acima de 44%, ou ainda plaquetas abaixo de 50.000 o paciente deve permanecer na unidade para fazer uso de hidratação venosa, com quantidade a correspondente a 1/3 do volume citado no período de 6 horas. O paciente é liberado para continuar hidratação em casa e retorno após 24 horas; grupo C, o paciente deve receber hidratação venosa na dose de 25 ml/Kg em 4 horas, quando deverá ser reavaliado. Caso melhore o tratamento de manutenção é o mesmo 25 ml/Kg, só que em oito horas e depois o mesmo volume em 12 horas. Esse esquema pode ser repetido por três dias. Caso não haja melhora o paciente é classificado como do grupo D para ser tratado como tal; grupo D, hidratação venosa na dose de 20 ml/Kg em 20 minutos, podendo ser repetido três vezes, com reavaliação de 15 a 30 minutos e avaliação de hematócrito após duas horas. Caso o hematócrito esteja em ascensão deve fazer uso de coloides sintéticos ou albumina na dose de  3 ml/Kg/h.

O tratamento vai seguir a classificação dos casos. Dengue hemorrágico é dividido em quatro tipos. O tipo 1 é dengue com sinais inespecíficos e sem manifestações hemorrágicas, a exceção da prova do laço; o tipo 2 inclui as manifestações hemorrágicas leves, tais como Epistaxe e gengivorragia; o tipo 3 já engloba o colapso circulatório, com pulso rápido e filiforme, pressão de pulso menor que 20 mmHg, pele pegajosa e fria, além da inquietação; com o tipo 4 o paciente se apresenta com pressão arterial e pressão de pulso indetectáveis, além de apresentar a magnificação dos sintomas do quadro 3.


REFERÊNCIAS

NOGUEIRA, Meri Bordignon. Caracterização biológica e genética de isolados clínicos de dengue sorotipo 3. Universidade Federal do Paraná. Tese de Doutorado. Curitiba, 2009. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/21990/TESE%20CORRIGIDA%2018.02.2010.pdf?sequence=1. (DESTAQUE)

SINGHI, Sunit; KISSOON, Nirajan; BANSAL, Arun. Dengue e dengue hemorrágico: aspectos do manejo na unidade de terapia intensiva. Jornal de Pediatria. v. 83. Suppl.2. p. 22-35. Rio de Janeiro, 2007.
LUPI, Omar; Carneiro, Carlos Gustavo; COELHO, Ivo Castelo Branco. Manifestações Mucocutâneas da dengue. Anais Brasileiros de Dermatologia. v. 82. n. 4. Jul/ago. Rio de Janeiro, 2007.

Serufo, José Carlos; NOBRE, Vandack; RAYES, Abdunnabi; MARCIAL, Tânia Maria; LAMBERTUCCI, José Roberto. Dengue: uma nova abordagem. Sociedade Brasileira de Medicina tropical. V. 33. N. 5. Set-out. Uberaba, 2.000.


BARROS, Lilian P. S.; IGAWA, Sonia E. S.; JOCUBDO, Suzana Y.; BRITO JUNIOR, Lacy C. Análise crítica dos achados hematológicos e sorológicos de pacientes com suspeita de Dengue. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. v. 30. n. 5. Set-out. São Paulo, 2008.

terça-feira, 1 de abril de 2014

COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISSEMINADA: COMPREENSÃO PARA TRATAR


COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISEMINADA (CIVD)

CIVD é uma complicação secundária a várias condições patológicas, além do parto, que se desenvolve através da ativação disseminada dos fatores de coagulação e subsequente ativação fibrinolítica também de grande intensidade. Essa briga entre a coagulação e a fibrinólise termina por esgotar as plaquetas, fibrina e fatores de coagulação, determinando um sangramento descontrolado, ou caso a fibrinólise seja ineficaz, haverá formação de trombos disseminados pelos vasos de pequeno e médio calibre, determinando infartos em diversos órgãos.

Dentre o complexo sistema de coagulação alguns eventos vão ser mais afetados que outros. Lembrando da via extrínseca convém dizer que o fator VII se junta ao Fator Tecidual – liberado dos vasos lesionados ou pelos monócitos e granulócitos ativados – e ativa diretamente o fator X da coagulação. Na via intrínseca o fator XII quando entra em contato com cargas negativas no tecido lesionado ativa uma cascata de reações que também passa pelo fator X. Ambos os caminhos determinam o trabalho em conjunto entre o fator X e V para ativar a trombina e assim quebrar o fibrinogênio em fibrina, que então se depositará nas lesões a fim de parar sangramentos. Na medida do avanço da formação da fibrina, essa vai entrando em contato com o epitélio normal e com isso é ativada a proteína C, um anticoagulante, impedindo a disseminação do coágulo.

O CIVD se manifesta secundariamente a diversos problemas, mas alguns são clássicos, tais como complicações obstétricas, neoplasias malignas, trauma importante e sepse. Existem dois mecanismos principais para CIVD: 1- ocorre liberação do Fator Tecidual na corrente sanguínea por monócitos; 2- lesão disseminada no endotélio vascular. Dentre os fatores etiológicos temos substâncias trombolíticas liberadas da placenta, grânulos de células leucêmicas e toxinas de bactérias gran-negativas e positivas – antes se atribuía CIVD apenas às negativas. Esse mecanismo é altamente prevalente, ocorrendo a CIVD em algum grau em todos os pacientes com sepse por qualquer organismo bacteriano. Trauma também irá induzir o problema por liberação de fosfolipídios na corrente sanguínea e consequente ativação de fatores de coagulação, pois o contato com esses fosfolipídeos muda a conformação elétrica do fator XII ativando-o. Além disso, a liberação de citocinas no trauma é equivalente ao ocorrido na sepse. A ocorrência de CIVD em pacientes vítimas de traumas graves é de ordem de 50 a 70%.

A sepse envolve produtos bacterianos ativadores de monócitos liberadores de interleucina-1, 6 e TNF, os quais determinam tanto a liberação de Fator Tecidual, como a inibição da trombomodulina (o receptor para trombina no endotélio que determinará a ativação da proteína C e com isso há inibição da quebra do fibrinogênio), causando os microtrombos, pois nesse caso os vasos ficarão repletos de fibrina.  As endotoxinas também inibem a trombomudulina impedindo que a trombina se acople no endotélio, ativam diretamente o fator XII, e os fragmentos do sistema de complemento ativam tanto plaquetas quanto seus predecessores, os granulócitos.

É sabido também que as vias extrínseca e intrínseca têm diferentes papéis no CIVD. A via extrínseca dá origem à coagulação e a intrínseca a perpetua. A via extrínseca logo responde à secreção de IL-6 e TNF-alfa pelos leucócitos e a intrínseca se mantém estimulada porque a agressão do leito vascular pelos leucócitos expõe superfícies fosfolipídicas que por contato mudam as cargas do fator XII, o que o ativa.

 Essa lesão endotelial se faz importante por liberar grande quantidade de Fator Tecidual disseminando a coagulação. O TNF liberado por células inflamatórias quando ativado intensifica fatores de adesão endoteliais que comandam o depósito de leucócitos no leito vascular, e estes subsequentemente agridem as células endoteliais. Na medida em que essa lesão vai ocorrendo, mais fator tecidual é liberado e maior é a coagulação ao longo dos vasos. Isso ocorre, por exemplo, nas intercorrências obstétricas, quando restos fetais ou placentários invadem a corrente sanguínea e são atacados pelo organismo materno. A reação inflamatória presente em algumas neoplasias também evolui para CIVD, principalmente a leucemia promielocítica aguda, e os cânceres de pulmão, pâncreas, cólon e estômago.

De certo há deposição disseminada de fibrina e consequente infarto de órgãos mais sensíveis, como os rins. Outra consequência da deposição de fibrina é a hemólise ocorrida quando a hemácia se espreme para passar pela microcirculação estreitada pela fibrina. A ordem dos locais de formação dos microtrombos são o cérebro, coração, pulmões, rins, adrenais, baço e fígado. Com a formação disseminada de microtrombos é disparado o gatilho para a quebra do plasminogênio em plasmina e essa digere a coágulo de fibrina. Os produtos dessa degradação então inibem a agregação plaquetária e também a repolarização de fibrina predispondo o sangramento profuso que começa quando os vasos ocluídos e fragilizados pela agressão dos leucócitos se rompem. Esse processo, quando ocorre nos alvéolos, produz exsudação de fibrina e edema local causando síndrome respiratória aguda.

Os anticoagulantes também vão estar inibidos. No caso da antitrombina, os níveis diminuem pelo consumo elevado e também pelos neutrófilos estarem produzindo elastases que a degradam. A proteína C estará diminuída pela menor produção e pela diminuição da atividade da trombomodulina em lhe ativar. No lado contrário, o inibidor do Fator Tecidual perde eficácia em inibir o Fator Tecidual.


                QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO

Existem diversos graus de evolução, indo do curso crônico causado pelas neoplasias até o fulminante causado pelas endotoxinas. A gravidez chega a se relacionar com 50% dos casos, sendo reversível após a retirada do feto, e as neoplasias com 33%. Os sintomas mais comuns são anemia hemolítica, falência respiratória, falência renal, convulsões, coma, falência circulatória e choque. A CIVD aguda, a exemplo das complicações obstétricas, cursam com eventos hemorrágicos, e A CIVD crônica ocorrida nas neoplasias cursa com eventos trombóticos.

Clinicamente nos casos agudos se pode observar sinais de resposta inflamatória, tais como febre, hipotensão e acidose, depois manifestações de sangramento difusas – petéquias, equimoses, gengivorragia, hematúria, sangramentos no TGI e em locais de punção venosa. Nos casos crônicos há trombose, evoluindo com rebaixamento do nível de consciência, delírio e coma. Na pele pode ocorrer isquemia focal com gangrena, nos rins oligúria e posteriormente azotemia, nos pulmões SARA, no TGI ulceração precoce e por fim anemia hemolítica.

Os dados laboratoriais incluem: PDF (degradação fibrina/fibrinogênio), Fibrinoeptídeo A (FPA), fragmento 1+2 de protrombina (F1+2), Complexo trombina antitrombina (TAT) e fibrina solúvel. Tais exames são muito caros e por isso não são realizados na prática, mas a clínica junto com exames generalistas é suficiente para fechar o diagnóstico: incluem-se então plaquetas abaixo de 100.000 ou rápido declínio a partir dos valores de base; alargamento dos tempos de coagulação (TT, TP e TTPA) aumentados, elevação dos produtos de degradação da fibrina séricos – como o dímero D; baixios níveis de antitrombina (AT).

Tudo isso permite classificar a CIVD em três fases: 1- compensada, quando os sintomas são discretos, o coagulograma e contagem de plaquetas estão normais, antitrombina (AT) tem discreta elevação, e os exames de alto custo, tais como o PDF, TAT, FPA e F1+2 estarão elevados; 2- moderada, possui sangramentos + disfunção de órgãos, coagulograma alargado, plaqueta e fibrinogênio em queda, assim como os fatores da coagulação; 3- grave possui os mesmos sinais do quadro moderado, porém mais intensos e com disfunção de múltiplos órgãos ao invés de um ou dois.


TRATAMENTO

O tratamento da CIVD é direcionado para a doença de base. Com relação à formação de trombos a heparina não está indicada. O único inibidor da coagulação indicado – sempre em casos graves – é a drotrecogina alfa ativada, que é a proteína C ativada recombinante. As contra-indicaçoes são pacientes com plaquetas abaixo de 30.000 e INR abaixo de 3, gestantes, menores de 18 anos, transplantados, renais crônicos, cirróticos e pacientes com AIDS. A proteína C ativada possui atividade anti-inflamatória e antiapoptótica, sendo esses motivos prováveis para a droga ter melhor resposta terapêutica em relação a outras para o mesmo fim.

A reposição de fatores de coagulação não estava indicada há alguns anos atrás, mas atualmente a indicação é que se o paciente apresentar níveis de fibrinogênio inferiores a 100 mg/dl solicita-se o uso de crioprecitado, que contém fatores VIII e XII, fibrinogênio, fibronectina e fator Von Willebrand. A prescrição é de uma unidade (20 a 30 ml) para cada 10 Kg de peso, o que aumentará o fibrinogênio plasmático em 50 mg/dl. Doses adicionais dependem da evolução clínica. Se o paciente apresenta clínica hemorrágica, o concentrado de plaquetas pode ser solicitado.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Manual de tratamento das coagulopatias hereditárias. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Série A. Normas e Manuais Técnicos. ed. 1. Brasília, 2006.

PINTÃO, Maria Carolina Tostes; FRANCO, Rendrik F. Coagulação Intavascular disseminada. Medicina: Simpósio de hemostasia e trombose. v. 34. p. 282-291. Jul-dez. Ribeirão Preto, 2001. (DESTAQUE)

FRANCO, Rendrik F. Fisiologia da coagulação: anticoagulação e fibrinólise. Medicina: Simpósio de hemostasia e trombose. v. 34. p. 229-237. Jul-dez. Ribeirão Preto, 2001. (DESTAQUE)


OFIDISMO: COMO TRATAR A PARTIR DO RECONHECIMENTO DOS SINAIS E SINTOMAS

FIGURA 01: SURUCUCU


EPIDEMIOLOGIA

Ocorrem óbitos no mundo na ordem de 100.000 por ano por acidentes ofídicos, sendo que esse número é apenas 0,45% do total dos acidentes. No Brasil o CIAVE recebe por ano 20.000 notificações, com 0,43% de letalidade. Na Bahia o CIAVE registra 3.068 acidentes por ano. Existem quatro gêneros de serpentes de importância médica no Brasil: Bothrops, os quais correspondem a 90% de todos os acidentes ofídicos; Crotalus, que corresponde a 8%; Lachesis, 1,5%; e Micrurus, 0,5%.  70% dos acidentes envolvem homens e também 70% acomete o pé e perna e 13% a mão e o antebraço. 53% dos acidentes predominam na faixa de 15 a 49 anos e muitos deles são acidentes de trabalho.


OS ACIDENTES

Algumas características permitem identificar uma serpente peçonhenta. No Brasil as classes referidas possuem cauda lisa (Bothrops), eriçada (Lachesis) ou com um guizo (chocalho) na ponta, que é a cascavel ou Crotalus. A exceção do gênero Micrurus, gêneros citados possuem um orifício, que fica entre o olho e a narina, com tem função termorreceptora: é a fosseta loreal. Quando essa estrutura é ausente e a serpente não possuem anéis coloridos, ela não é peçonhenta.
FIGURA 02: Necrose devastadora causada por acidente botrópico, que apesar de chocar, ainda é mais brando em relação ao acidente laquético.


As serpentes do gênero Bothrops, responsáveis pela maioria dos acidentes, são as jararacas, ou também conhecidas como caiçaca, urutu-cruzeiro, jararacuçu, urutu e cobra-de-papagaio. Ela apresenta comportamento agressivo quando se sente ameaçada e seu bote pode não produzir ruído algum. O veneno dessa serpente possui três efeitos: proteolítico, coagulante e hemorrágico. A ação proteolítica na realidade é uma generalização para a ação das enzimas hialuronidaes e fosfolipases com consequente liberação de fatores de inflamação e hemorraginas, resultando em edema, dor, bolhas e necrose. A peçonha dessa serpente também possui uma ação semelhante à protrombina, convertendo o fibrinogênio em fibrina, gerando trombos como na CIVD, mas de menor disseminação. As hemorragias ocorrem por conta das hemorraginas contidas na peçonha, estas possuindo ação de lesar a membrana basal e o endotélio dos vasos no local de inoculação, onde forma uma placa gangrenosa.

FIGURA 03: gênero Bothrops ou jararaca.


FIGURA 04: Flictemas do acidente botrópico.

Os acidentes ocorridos pelo gênero Bothrops podem ou não evidenciar o local de inoculação, mas sempre haverá edema precoce expansível para todo o membro e dor de intensidade variável. No período de algumas horas o paciente evolui com equimoses, bolhas, necrose com abcesso e linfadenopatia ganglionar. Os efeitos sistêmicos incluem eventos hemorrágicos em geral, tais como sangramentos em ferimentos pré-existentes, gengivorragia, epistaxes e hematêmese. Há também vômitos, cólica abdominal e diarreia, sendo esses sinais bem característicos deste tipo de acidente. As hemorragias podem levar o paciente a óbito quando ocorrem no trato gastrointestinal e no sistema nervoso, ou ainda por choque. Outra complicação com potencial para óbito é a insuficiência renal aguda devido ao contato da peçonha com os túbulos renais.                

No acidente crotálico o perigo são as ações da peçonha no sistema nervoso, com potencial para levar à morte 72% das pessoas não tratadas com o soro anticrotálico. 11% vão a óbito mesmo com o uso do soro por insuficiência renal aguda.

FIGURA 05: Cascavel.

A ação neurotóxica da peçonha é causada pela crotoxina, de ação pré-sináptica, com bloqueio da liberação de acetilcolina e com isso bloqueio neuromuscular. Existe uma fração do veneno não identificada que produz rabdomiólise e liberação de mioglobina. Mioglobina livre, por sua vez é tóxica assim como a hemoglobina livre, produzindo ação hemolítica. A ação coagulante esvai todas as reservas de trombina e pode por fim evoluir para incoagulabilidade sem redução do número de plaquetas. Mesmo assim, na maioria das vezes as ações hemorrágicas são discretas.

As manifestações sistêmicas incluem mal-estar, náuseas, vômitos, sudorese, prostração e sonolência. Já as neurológicas são ptose palpebral, fácies miastênicas, oftalmoplegia, midríase, visão turva e diplopia. Insuficiência respiratória pode ocorrer, mas não é frequente.A urina escurecida ocorre pela liberação de mioglobina e pode indicar a principal complicação: insuficiência renal aguda. A anúria pode ocorrer dentro de 24 horas, sendo explicado pela necrose tubular. A mioglobina tem ação lesiva direta sobre os túbulos renais. Com o PH ácido da urina a mioglobina será precipitada no túbulo, mantendo a agressão química pelo agrupamento heme.

Os acidentes laquéticos são exemplificados pela surucucu (figura 01), pico-de-jaca ou surucutinga. Lachesis são a classe de serpente peçonhenta de maior tamanho no mundo, com relato de até 4 metros. A ação de sua peçonha tem as mesmas manifestações locais do acidente Bothrópico, pois tem os mesmos efeitos coagulante, hemorrágico e proteolítico, porém mais intensos. Não há efeitos neurológicos. Em até duas horas após o acidente o paciente manifesta dor e edema extensos. Segue então equimose extensa, linfadenopatia, sangramentos, flictemas ou bolhas de conteúdo sanguinolento ou seroso, tudo dentro das primeiras cinco horas. O choque circulatório aqui é muito mais rápido, ocorrendo em até 10 horas no acidente bothrópico e em 15 minutos no acidente laquético, devido ao rápido consumo dos fatores de coagulação.
FIGURA 06: Necrose difusa por acidente laquético.


Alguns sinais laboratoriais dão ideia deste tipo de acidente como a queda dos fatores de coagulação, aumento do Tempo de coagulação (TC), hemoconcentração com elevação de hematócrito e hemoglobina, leucocitose, elevação de transaminases e creatinoquinases (CK). Epistaxes, hematêmese, gengivorragia, hemoptise e hematúria são menos frequentes, assim como a insuficiência renal aguda. Já nos casos graves há taquicardia, taquipneia, sudorese, agitação, ansiedade, cefaleia, tontura, visão turva, muitas vezes relacionados ao choque cardiocirculatório. A reação local mais impactante é a necrose tecidual, com abcesso e síndrome compartimental que evoluem para déficits funcionais e amputação, ou pelo menos exigem fasciotomias. A insuficiência renal não é frequente, assim como o choque.

O acidente elapídico ocorre pelo gênero Micrurus, conhecidas como corais. Como essas serpentes não são agressivas e talvez por isso correspondem a somente 0,4% do total de acidentes ofídicos.  A ação da peçonha é eminentemente neurotóxica a nível da junção neuromuscular ou pós-sináptico, para a maioria dos exemplares dessas serpentes. Como a neurotoxina da peçonha tem um pequeno peso molecular ela se difunde rapidamente pela corrente sanguínea, alcançando os músculos na placa motora para competir pelos receptores da acetilcolina. As ações pré-sinápticas se apoiam na inibição da liberação da acetilcolina, assim como pela crotoxina.
FIGURA 07: Coral.


O resultado da peçonha é paralisia muscular, mas felizmente sua ação é exclusivamente periférica. No local da picada haverá dor e edema, enquanto que no membro atingido haverá parestesia. Assim como no acidente crotálico vai haver ptose palpebral e diplopia. Haverá também fásceis miastenica, mialgia generalizada, fasciculações musculares, dificuldade de deambulação e paralisia dos membros. Se houver paralisia da musculatura venopalatina o indivíduo perderá a capacidade de deglutir, de vomitar e mastigar. O caso grave será aquele em que a ação da toxina se expande para a musculatura torácica, culminando em insuficiência respiratória e morte.


EXAMES DIAGNÓSTICOS DE COMPLICAÇÕES

O tempo de coagulação é justificado pelo efeito das peçonhas sobre a trombina, assim como o hemograma, pois o acidente laquético, e o botrópico, vão produzir hemoconcentração, embora de intensidades diferentes. Deve-se solicitar também a dosagem dos fatores de coagulação. CK-MB vai demonstrar a gravidade da rabdomiólise do acidente crotálico, além das transaminases hepáticas. A avaliação do clearence de creatinina promove o acompanhamento da insuficiência renal. O acidente crotálico ainda exige desidrogenase lática e aldolase, além da biopsia muscular para comprovar a miotoxidade.


TRATAMENTOS

Tratamento contra o veneno botrópico: administração precoce de soro antibotrópico, antibotrópico-laquético e antibotrópico-crotálico, sempre por via intravenosa. Deve-se seguir o esquema dos quadros sintomáticos. No leve e moderado vai haver dor, edema e equimose, mas a classificação do quadro vai depender da intensidade. Se há eventos hemorrágicos de qualquer intensidade, anúria ou sinais de choque o quadro é classificado grave. Então no quadro leve se utiliza 2 a 4 ampolas de soro, no moderado 4 a 6 e no grave 12.

O tratamento geral envolve manter o membro afetado elevado, uso de qualquer analgésico e hidratação, esta sendo de 30 a 40 ml/hora (em 24 horas contínuo) no adulto e na criança 1 a 2 ml/Kg/hora. Essa manobra é direcionada à prevenção da insuficiência renal aguda, pois dilui a urina e restringe o contato direto da peçonha com a superfície dos túbulos. Para prevenir complicações por bactérias que porventura tenham adentrado pelo local de inoculação, pode-se utilizar clindamicina, que possui boa ação contra estreptococcus e estaphylococcus, e possui boa distribuição.

Caso seja notado que o edema esteja evoluindo para síndrome compartimental deve-se realizar a fasciotomia rapidamente.

Tratamento contra o veneno crotálico: é feito com soro anticrotálico ou antibotrópico-crotálico. Para prevenir a insuficiência renal é louvável hidratar a paciente como citado acima (1 a 2/ 30 a 40).

Nesse acidente a quantidade de ampolas de soros dependerá se o acidente for leve, quando usará cinco ampolas, moderado usará 10 ampolas e no grave será necessário 20 ampolas. Todos os sintomas no quadro leve serão discretos, a fáceis miastênica estará ausente ou irá se manifestar bem depois do acidente, assim como a visão turva. O quadro moderado irá apresentar a fáceis miastênica precocemente, podendo ser discreta ou evidente. Nesse quadro a urina estará um pouco escurecida, sendo esse um dado importante para diferenciar do quadro grave. A anúria também, pois somente estará presente no quadro grave, e os todos os sintomas gerais serão evidentes e intensos. Para tratar a anúria utiliza-se manitol a 20% na dose de 5 ml/Kg na criança e 100 ml no adulto, ou furosemida 01 ampola ou 20 mg.

Tratamento do acidente laquético: usa-se o soro antilaquético ou antibotrópico-laquético. O número de ampolas segue a evolução clínica do paciente. Inicialmente se utiliza 10 ampolas. Caso sinais de manifestações vagais continuem, tais como hipotensão e bradicardia, aumenta-se o uso para até 20 ampolas.
 
Tratamento para o acidente elapídico: a soroterapia sempre é de 10 ampolas de soro antielapídico, mas o tratamento não se limita a ele. Deve ser implementado anticolinesterásicos para aumentar o tempo de presença da acetilcolina na placa motora. Mas antes disso deve utilizar um antagonista competitivo dos efeitos muscarínicos da cetilcolina (extravasamento de potássio da célula), como a bradicardia. Usa-se a atropina na dose de 0,05 mg/Kg na criança ou 0,5 mg no adulto por via IV. Aplica-se então a neostigmina, que é o anticolinesterásico, na dose de 0,05mg/Kg por via IV no adulto e criança. A melhora com o uso dessa medicação é rápida nos primeiros 10 minutos. A terapêutica de manutenção será com essa mesma medicação na dose de 0,05 a 0,1 mg/Kg a cada quatro horas, ou até em intervalos menores desde que precedidos de atropina.

OBS: a ampola da atropina possui 0,25 mg e da neostigmina possui 0,5 mg por ampola.


REFERÊNCIAS

Pitta GBB, Castro AA, Burihan E, editores. Angiologia e cirurgia vascular: guia ilustrado. Maceió: UNCISAL/ECMAL & LAVA; 2003. Disponível em: URL: http://www. lava.med.br/livro.

BRASIL. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. Ministério da Saúde. Fundação Nacional da Saúde. Brasília. Out, 2001.

RODRIGUES ET AL. Apostila de toxicologia básica. Governo Estadual da Bahia. Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. Centro de Informações Antiveneno. Salvador-Ba. Ago, 2009.