terça-feira, 15 de abril de 2014

DENGUE: UM MECANISMO INTELIGENTE

EPIDEMIOLOGIA BREVE

A dengue é uma doença causada por um dos quatro sorotipos do flavivírus, DENV 1, 2, 3 e 4, e seu principal vetor de transmissão é o artrópode Aedes aegypti. Por ano são contabilizadas mais de 100 milhões de casos de dengue clássica no mundo e mais de 500 mil de casos de dengue hemorrágica. No Brasil, apenas no ano de 2010, até o dia 03 de julho, já haviam sido notificados 942. 153 casos de dengue, com o Estado do Acre sendo o mais atingido. 


DENGUE E O SINERGISMO DO NOSSO SISTEMA IMUNOLÓGICO

A dengue é uma patologia de eventos eminentemente inflamatórios. No homem possui um período médio de incubação de 5 a 6 dias, sendo infectivo um dia antes do aparecimento da febre até o sexto dia da doença. Após adentrar no organismo o vírus da dengue tem nos linfonodos seu primeiro sítio de replicação. O vírus estão se direciona para os tecidos musculares, onde posteriormente é englobado pelo macrófago, seu principal sítio proliferativo. A mialgia e inclusive a dor ocular, se justificam justamente pelo tropismo pelos músculos gerais e oculomotores. A dor ou qualquer das manifestações ocorridas na dengue ocorre por conta da intensa resposta inflamatória contra o capsídeo do vírus, especificamente falando da proteína E, um componente do capsídeo viral. A resposta inflamatória intensa ocorre por meio de um espasmo vascular na intensão de levar plasma aos tecidos infectados e com eles as células de defesa. Por vezes esse evento ocorre com grande intensidade, arrastando consigo hemácias e manifestando na pele as equimoses tão características da dengue.

FIGURA 01: Momento em que as células endoteliais dão passagem para o plasma, que então carregam as células de defesa até o tecido infectado. 

A proteína E possui três porções: uma região central contendo um radical amina; uma segunda região com predominância de dímeros; e uma região que contém o C terminal, este sendo o responsável pela determinação dos diferentes tipos de vírus do dengue. Os dímeros da proteína E também são os responsáveis pela fusão do capsídeo viral com a membrana dos macrófagos quando o vírus está no seu interior. Após a endocitose do vírus as vesículas acidófilas se dirigem para sua destruição, mas assim que a proteína E entra em contato com o PH<6,5 ela muda sua conformação e termina por se fundir com a membrana do endossomo, permitindo que o vírus adentre no citoplasma ao invés de ser destruído.

A entrada do flavivírus nos macrófagos também ocorre por ligação com a porção Fc dos anticorpos ligados à parede dessas células, para então se fixarem na porção Fc gama ligada diretamente à membrana do macrófago. Essa porção deveria ativar macrófagos contra outros agentes infecciosos, mas em vez disso, há o fenômeno de facilitação por anticorpos (ADE), pois pela porção Fc gama o vírus também conseguirá adentrar no citoplasma da célula.

Outras duas proteínas presentes no capsídeo viral capazes de induzir resposta imunológica são a NS1 e NS3. A NS1 está relacionada com a lise total da célula com o vírus no seu interior, pois a defesa do organismo ocorre com a destruição dos macrófagos infectados. Linfócitos T citotóxicos são ativados contra a NS3, e os linfócitos T helper são ativados pela proteína E, NS1 e NS3. Após o início dos sintomas as IgM são detectados no 4° dia, com pico entre o 7° e 8°, quando então começam a declinar. As IgGs também se elevam no quarto dia, mas o pico ocorre em duas semanas e se mantém detectáveis por vários anos, conferindo imunidade permanente ao tipo previamente infectante e por aproximadamente seis meses aos outros tipos.

Importante também é compreender a existência de dois tipos de reação imune contra o vírus do dengue: a primeira reação ocorre quando os linfócitos T helper estimulam o ataque das células de defesa contra as células infectadas destruindo-as; a segunda reação e dita paradoxal, onde o próprio hospedeiro sai perdendo com a resposta imune, podendo inclusive evoluir com síndrome do choque do dengue. Esse tipo de resposta pode ser observada em pessoas previamente infectadas, ou em crianças abaixo de um ano, imunizadas pela infecção materna durante o período gestacional, quando anticorpos trafegam entre o binômio mãe-feto. Nessa reação o extravasamento plasmático pode levar o paciente a uma condição de baixo volume vascular e queda de pressão arterial com potencial fatal, configurando a o dengue hemorrágico/síndrome do choque do dengue (SCHD).

FIGURA 02: síndrome do choque do dengue com manifestações hemorrágicas extremas.


Em 1981 ocorreu uma epidemia de dengue hemorrágica em cuba pelo tipo dois, quatro anos após uma epidemia benigna tipo um, o que permitiu concluir que a infecção nessa sequência seria 100X mais grave que a reinfecção por tipo 1.

Como dito antes, existe uma reposta imune paradoxal, quando o indivíduo também sai perdendo, evento esse envolvido na gênese do choque. Quando os macrófagos sinalizados como infectados são lisados por linfócitos, terminam por liberar a tromboplastina, ou fator tecidual comandando eventos pró-coagulantes. Como as IL-2 e IL-8 também são liberadas, vai haver secreção de histamina pelos basófilos, aumentando a permeabilidade vascular, imitando os eventos hemorrágicos da CIVD. A IL-6 também vai estar elevada na SCHD, estando relacionada com a febre.

Foi identificado também um fator citotóxico liberado dos linfócitos T helper que está comprovadamente associado com o extravasamento de líquidos do meio intravascular para o interstício por induzir a secreção de histamina, além de destruir outros linfócitos T, macrófagos e megacariócitos. Esse fator citotóxico se configura um fator de gravidade, juntamente com as variações na organização da proteína E. Tais variações nessa proteína proveriam o flavivírus com melhor capacidade de se ligar às superfícies e maior resistência contra outros linfócitos.

QUADRO CLÍNICO

O quadro varia desde sintomas gerais de gripe até eventos hemorrágicos mais graves, o que vai depender dos fatores de risco tais como: cepa, sorotipo viral, estado nutricional, estado imune e constituição genética do indivíduo. O período de incubação do vírus é de quatro dias. Podem ocorrer a febre branda e máculas na pele, não dando muitos sinais da patologia em curso, mas também pode ocorrer a febre de mais de 39°C que pode persistir de cinco a sete dias e apresentar um curso bifásico de 12 a 24 horas. A falta de apetite será um dos fatores que predispõe os pacientes à anorexia. Pode ocorrer artralgias, dor retororbitária, mialgias, hepatomegalia, prostração, exantema, prurido cutâneo e dor abdominal, este último sendo um sinal de agravamento. Caso nenhum desses sinais seja doloroso os dados laboratoriais podem se restringir a baixa discreta de plaquetas e discreto aumento de enzimas hepáticas. Esses sinais, assim como a febre, são autolimitados, com exceção da prostração, que pode permanecer por semanas. Um sinal que ocorre em sua maioria nas infecções primárias é a erupção cutânea, entre o segundo e quinto dia após o aparecimento da febre, sendo apenas macular ou maculopapular.

Quando se trata de dengue hemorrágica, os sintomas começam como uma dengue clássica, mas por volta do terceiro dia aparecem as manifestações hemorrágicas, tais como petéquias em tronco. Caso o paciente tenha instalado algum acesso venoso, esse pode sangrar ou ainda pode haver sangramentos em nariz e gengiva. Depois de sete dias, justamente quando ocorre a defervenscência, aparecem os sinais de insuficiência circulatória, fadiga, suor frio e manifestações hemorrágicas por conta do extravasamento vascular, podendo deixar a pressão e pulso indetectáveis.

Na maioria dos casos a dengue hemorrágica é precedida de sinais de alarme. São eles:  dor abdominal intensa, vômitos persistentes, hipotensão postural e arterial, pressão de pulso menor que 20 mmHg, pulso rápido e filiforme, hepatomegalia dolorosa, hemorragias, extremidades frias, cianose, agitação ou letargia, anúria, diminuição repentina da temperatura e aumento repentino do hematócrito.

O comprometimento hepático profundo é um achado comum nos casos fatais, sendo causados porque o vírus induz a apoptose dos hepatócitos. Esse comprometimento hepático é mais profundo quando a infecção se dá pelos tipos DENV 3 e 4. A dengue visceral é uma variante da dengue que compromete também o coração que foi identificada em 2007 na fronteira do Mato Grosso com o Paraguai, induzindo ao comprometimento dos fígado, pulmões e cérebro. O comprometimento do SNC se desenvolve através da síndrome de Guillain Barré, mielite e paralisia de nervos cranianos.  

O diagnóstico laboratorial pode ser solicitado como IgM e IgG para dengue, caso o paciente já tenha mais de quatro dias após o aparecimento dos sintomas. Deve-se atentar para os casos de infecção secundária, pois se no paciente previamente imunizado pelo vírus da dengue, ou até por outros tipos de flavivírus, pode ocorrer reação cruzada e falsos-positivos. O IgA também pode ser solicitado, pois tem quase tanta efetividade quanto o IgM. O primeiro se positiva com 4,6 dias, e o IgM se positiva com 3,6 dias.

As reações cruzadas são a explicação para diversos casos falso-positivos, além de existirem também os falsos- negativos. Por isso deve-se solicitar o anti-NS1, que atualmente é o exame mais sensível para a detecção da dengue, tendo uma sensibilidade de 93,8% e especificidade de 100%. A reação em cadeia de polimerase (PCR) também se faz muito útil, apesar de não ser muito utilizado na prática, possibilitando a detecção precoce da presença do DNA complementar ao RNA viral, inclusive possibilitando a detecção do sorotipo e subsorotipos do vírus.


CLASSIFICAÇÃO E TRATAMENTO

A dengue pode ser dividida em quatro grupos: A são os casos suspeitos por conta do quadro limitado a sintomas gerais sem manifestações hemorrágicas nem prova do laço positiva; B são casos suspeitos com prova do laço positiva e manifestações hemorrágicas espontâneas discretas sem repercussões hemodinâmicas; C são casos com presença de sinais de alarme, independente da presença de hemorragias; D são casos de pressão arterial convergente, hipotensão ou choque, podendo ou não ter manifestações hemorrágicas.

O tratamento é como segue: A, hidratação oral de 60 a 80 ml/Kg/ dia sendo 1/3 de soro de reidratação oral (SRO) e 2/3 de líquidos em geral. Apesar desse tratamento ser domiciliar o paciente deve ser orientado ao retorno no momento da defervescência; B, o paciente deve permanecer na unidade fazendo uso de sintomáticos e reidratação oral assistida. A depender do paciente o tratamento pode ser ambulatorial com hidratação oral de 80 ml/Kg/dia. Se o paciente homem estiver com hematócrito acima de 50% e mulher acima de 44%, ou ainda plaquetas abaixo de 50.000 o paciente deve permanecer na unidade para fazer uso de hidratação venosa, com quantidade a correspondente a 1/3 do volume citado no período de 6 horas. O paciente é liberado para continuar hidratação em casa e retorno após 24 horas; grupo C, o paciente deve receber hidratação venosa na dose de 25 ml/Kg em 4 horas, quando deverá ser reavaliado. Caso melhore o tratamento de manutenção é o mesmo 25 ml/Kg, só que em oito horas e depois o mesmo volume em 12 horas. Esse esquema pode ser repetido por três dias. Caso não haja melhora o paciente é classificado como do grupo D para ser tratado como tal; grupo D, hidratação venosa na dose de 20 ml/Kg em 20 minutos, podendo ser repetido três vezes, com reavaliação de 15 a 30 minutos e avaliação de hematócrito após duas horas. Caso o hematócrito esteja em ascensão deve fazer uso de coloides sintéticos ou albumina na dose de  3 ml/Kg/h.

O tratamento vai seguir a classificação dos casos. Dengue hemorrágico é dividido em quatro tipos. O tipo 1 é dengue com sinais inespecíficos e sem manifestações hemorrágicas, a exceção da prova do laço; o tipo 2 inclui as manifestações hemorrágicas leves, tais como Epistaxe e gengivorragia; o tipo 3 já engloba o colapso circulatório, com pulso rápido e filiforme, pressão de pulso menor que 20 mmHg, pele pegajosa e fria, além da inquietação; com o tipo 4 o paciente se apresenta com pressão arterial e pressão de pulso indetectáveis, além de apresentar a magnificação dos sintomas do quadro 3.


REFERÊNCIAS

NOGUEIRA, Meri Bordignon. Caracterização biológica e genética de isolados clínicos de dengue sorotipo 3. Universidade Federal do Paraná. Tese de Doutorado. Curitiba, 2009. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/21990/TESE%20CORRIGIDA%2018.02.2010.pdf?sequence=1. (DESTAQUE)

SINGHI, Sunit; KISSOON, Nirajan; BANSAL, Arun. Dengue e dengue hemorrágico: aspectos do manejo na unidade de terapia intensiva. Jornal de Pediatria. v. 83. Suppl.2. p. 22-35. Rio de Janeiro, 2007.
LUPI, Omar; Carneiro, Carlos Gustavo; COELHO, Ivo Castelo Branco. Manifestações Mucocutâneas da dengue. Anais Brasileiros de Dermatologia. v. 82. n. 4. Jul/ago. Rio de Janeiro, 2007.

Serufo, José Carlos; NOBRE, Vandack; RAYES, Abdunnabi; MARCIAL, Tânia Maria; LAMBERTUCCI, José Roberto. Dengue: uma nova abordagem. Sociedade Brasileira de Medicina tropical. V. 33. N. 5. Set-out. Uberaba, 2.000.


BARROS, Lilian P. S.; IGAWA, Sonia E. S.; JOCUBDO, Suzana Y.; BRITO JUNIOR, Lacy C. Análise crítica dos achados hematológicos e sorológicos de pacientes com suspeita de Dengue. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia. v. 30. n. 5. Set-out. São Paulo, 2008.

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