domingo, 8 de dezembro de 2013

ANEMIA FALCIFORME



ANEMIA FALCIFORME


É um transtorno hereditário causado por uma mutação na hemoglobina, determinando um comportamento anormal dos eritrócitos. O gene para essa anemia ocorre preferencialmente em países da África. Nos recém-nascidos afro-americanos dos Estados Unidos a prevalência vai de 8 a 10%, mas na África Ocidental esse número vai de 25 a 30%, com 120.000 bebês nascendo com a doença falciforme a cada ano. Para quem tem a doença falciforme, a expectativa de vida é de 42 anos para homens e 48 para mulheres.

A doença se manifesta por conta de uma mutação no cromossomo 6, onde há uma troca do ácido glutâmico por valina, culminando numa cadeia defeituosa denominada P(s), e por isso a hemoglobina resultante será chamada de HbS.  O resultado básico disso uma deficiência na capacidade de deformação do eritrócito, ocorrendo nos momentos de dessaturação de oxigênio, geralmente quando o mesmo passa por uma arteríola ou vênula. Noutros casos o eritrócito também se adere ao endotélio vascular, causando obstruções. Como a doença é autossômica recessiva, irão existir dois padrões: heterozigotos terão o traço falciforme, não havendo nenhum sintoma na maioria das vezes; homozigotos terão a doença falciforme, esta caracterizada por anemia crônica e dor recorrente.

Todo o problema ocorre quando a hemácia perde O2, modificando suas propriedades. Na presença de oxigênio tanto a HBA (normal) quanto a HbS tem a mesma solubilidade e capacidade de deformação. Porém, quando a HbS é dessaturada essas duas características decaem muito. Como a atração entre as moléculas de hemoglobina aumenta, ocorre polimerização entre as cadeias de globina e com isso a modificação da forma da hemácia, tonando-a então alongada – ou em forma de foice – e rígida. Quando a velocidade sanguínea é normal, essa hemácia deformada só ganha a forma de foice quando alcança as grandes veias, onde recupera oxigênio. Mas não se pode confundir: o leito microvascular é onde a hemácia perde o oxigênio, mas a polimerização só ocorre alguns segundos depois, já nas veias, e lá mesmo se recupera. Isso justifica o porquê de em condições normais os indivíduos não serem acometidos por obstrução disseminada.

A mutação ocorre na vida intrauterina, porém, como a hemoglobina fetal (HbF) não polimeriza como ocorre com a HbS, a doença estará suprimida. No entanto, quando a criança alcança os seis meses de idade, quando a fração da HbS já alcançou 75% do total, as manifestações se iniciam. Um fato interessante é que a HbF inibe a polimerização muito mais que a HbA, e inclusive, aqueles indivíduos que cursam com persistência hereditária da HbF vão ter sintomas mais brandos. Como a polimerização é função da presença da HbS, os eritrócitos com CHCM (concentração de hemoglobina corpuscular média) baixa, também terá um fator limitante.

Em suma, o composto oxi-HbS não vai ter repercussões falcêmicas, ao contrário das situações de queda de O2 sanguíneo, quando se forma a desoxi-HbS, onde mora todo o problema. Os polímeros então se formam em velocidade maior quanto mais rápida é a condição de desoxigenação. Quanto mais rápido as hemácias perdem oxigênio, mais núcleos de formação dos polímeros de HbS vão existir, e mais demorados voltarão à forma inicial. Na realidade alguns nem voltam. São as células irreversivelmente falcizadas, chamadas de drepanócitos, sendo justamente as células que possibilitam a identificação da anemia falciforme nos esfregaços microscópicos.


                                                      Figura 02- Fenômeno vásculo oclusivo

Existem algumas condições que pioram a queda de oxigênio nos eritrócitos. Na medida em que mais células vão tomando a forma de foice mais viscoso estará o sangue, o que dificulta ainda mais o transito de oxigênio. Ocorre também desidratação por conta de uma perda de potássio que leva consigo o cloro e funciona em contra-transporte com o cálcio. Isso resulta em rebaixamento do Ph intracelular e perda de água, sendo manifestado por CHCM de mais de 50g/dl. Deve-se lembrar que a saturação de O2 pela hemoglobina é função inversa aos ambientes ácidos. Então quanto menor o volume do eritrócito, menos oxigênio haverá dentro dele, mais próximos estarão as moléculas de HbS entre si para a polimerização, e assim mais difícil será a reversão para a forma não-falcizada. Quando essas hemácias passam pelos rins, onde existe um ambiente hipertônico, a desidratação vai ser agravada, ocorrendo a falcização até mesmo em eritrócitos apenas com o traço falciforme.

A saída de cloreto descrita também vai causar uma outra consequência, que é a modificação elétrica dos eritrócitos. A hemácia que perde mais potássio fica mais positiva em relação às demais, culminando numa atração magnética com agrupamentos de células que facilitarão a oclusão de vasos.

As hemácias com HbS também vão ter uma sobrevida bem menor (20 dias) em relação às normais HbA (120 dias). Um grande contribuinte para isso são os radicais livres consequentes da instabilidade da HbS. Essas quando oxidadas geram radicais livres agressores das proteínas e lipídios da membrana da hemácia, além das próprias HbSs restantes. Essa oxidação facilita a agregação das hemácias nos endotélios e nos macrófagos, determinando sua destruição. Na medida em que alguma hemácia vai se aderindo ao endotélio, neutrófilos se aderem a elas, e outras hemácias, aquelas irreversivelmente afoisadas, se aderem aos leucócitos. Isso é tão verdade que em pesquisas foi descoberto a relação direta entre numero de leucócitos e taxa de mortalidade. Outra questão relacionada aos leucócitos é a esfoliação do leito vascular no decorrer da doença, gerador de células circulantes produtoras de fator endotelial ativador de plaquetas e consequentemente distúrbios de coagulação.

Já hemólise é o evento mais evidente na anemia falciforme. A oxidação da HbS induz também à adesão de IgG e moléculas de complemento, ativando macrófagos contra as hemácias. Com a falcização recorrente das hemácias, gerando células rígidas, culminam no seu aprisionamento extravascular – no baço – e consequente destruição. Na realidade a destruição esplênica é responsável por dois terços de toda a hemólise. Na vigência de inflamações em geral a anemia é exacerbada, pois nesse caso, a despeito da hemólise contínua, ocorre crises aplásicas por alguns dias.  Infecções pelo parvovírus B19 levam a esta condição por terem a capacidade de invadir o precursor mielóide, estando envolvidos em dois terços dos casos. Caso os fenômenos oclusivos culminem em necrose de medula, a crise aplásica também pode ocorrer, assim como mudanças bruscas de ambiente e inalação de oxigênio desnecessária com altas tensões do gás e consequente supressão da produção de eritropoietina, geralmente em dois dias. Com a capacidade de retenção de sangue pelo baço e fígado, pode-se ainda ter um caso de hemólise aparente.

Mesmo com essa quantidade de eventos, o que geralmente leva o paciente aos consultórios são as crises de dor, em muitos casos o primeiro sintoma. A origem das internações são variadas: um terço dos pacientes raramente sentem dor, outro terço é internado de dois a seis vezes no ano e outro terço é internado mais de seis vezes no ano. É certo que a dor seja causada por vasoclusão, mas o motivo para a crise vasoclusiva pode ser variado, indo desde a impossibilidade de determinação – a maioria – até motivos diversos, tais como ingesta alcoólica, menstruação, estresse, frio, desidratação e infecções em gral. A duração é de alguns dias e a intensidade pode ir de leve a intensa a ponto de causar desespero, depressão e apatia. Os pacientes geralmente se apresentam com dor à palpação, febre, taquipnéia, hipertensão, náusea e vômito.

Um grave evento gerador de dor é quando a vasoclusão ocorre nos ossos. Essa oclusão ocorre com frequência no osso trabecular e daí segue a necrose, a exemplo da necrose da cabeça do fêmur e deformidades em geral, como as vértebras em boca de peixe, com esse osso tornando-se bicôncavo. A necrose da cabeça do fêmur, por exemplo, forma uma imagem radiológica semelhante à Legg-Calve-Perses, inclusive tendo um crescimento secundário de osso mais frágil que vai acarretar deformação da epífise com o passar dos anos.

A necrose também ocorre nos rins, local de especial indução da falcização por conta do ambiente hipertônico que induz a desidratação das hemácias (hemácia desidratada é igual à HbS polimerizada). Mas o evento renal mais comum é a isostenúria, que é a perda da capacidade de concentração de urina secundária à necrose tubular e com isso o túbulo coletor reabsorve menos água mesmo com aumento da secreção de ADH. A isquemia de parte dos glomérulos induz ao aumento compensatório de outros, e resulta em glomeruloesclerose, ocasionando insufuciência renal crônica que pode evoluir para perda renal total, sendo essa uma das principais causas de morte por anemia falciforme.

As principais complicações hepáticas são a colelitíase por cristais de bilirrubinato de cálcio, eventos oclusivos secundários e hepatites virais. Quando a hemólise ocorre em grande quantidade de hemácias a bilirrubina vai até o fígado para ser conjugada, onde pode formar cristais de bilirrubinato de cálcio. O cálculo formado pode migrar para o ducto colédoco e causar icterícia colestásica. Como aqui também irão existir os fenômenos vasoclusivos, com o evoluir da doença ocorrerá fibrose do parênquima.


SINTOMAS

                                                            Figura 03: Síndrome mão-pé

Como já foi dito a dor é o primeiro sintoma, sendo secundário aos eventos oclusivos. Duram de quatro seis dias, mas podem também chegar a semanas e podem ser iniciadas por infecções, condições de hipóxia, febre, acidose, desidratação e exposição ao frio. Pode iniciar como dactilite ou síndrome mão-pé, que se caracteriza por uma inflamação dos tecidos que revestem essas estruturas, ficando inchadas, dolorosas e por vezes vermelhas e quentes.

São considerados febre maior que 38°, desidratação, palidez, vômitos recorrentes, aumento do volume articular, dor abdominal, eventos pulmonares agudos, sintomas neurológicos, priaprismo e processos álgicos em geral
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Ocorre também a síndrome torácica aguda, sendo um infiltrado pulmonar que se manifesta com dor e insuficiência respiratória, sendo por isso a causa mais comum de morte secundária a anemia falciforme. O coração vai encontrar-se congesto e pelo alto débito será possível ouvir a terceira bulha.

Perda de visão também pode ocorrer devido aos microinfartos. É a retinopatia falcêmica, que pode ser de dois tipos: não-proliferativa, sendo na realidade hemorragias, dando uma cor salmão à esclera; e proliferativas, que é a evolução da primeira, sendo marcada pelo crescimento de novos vasos que também permitem o extravasamento de sangue e, assim como na retinopatia diabética, evoluem para descolamento da retina.



DIAGNÓSTICO

Antes de tudo deve se orientar às mães que façam o teste do pezinho, pois esse é capaz de detectar tanto o traço falciforme, como a doença falciforme, além de informar como é o genótipo dos pais e estimar a probabilidade de que uma gestação futura origine um concepto realmente doente. Esses teste é realizado gratuitamente nas unidades básicas de saúde.

O hemograma vai indicar anemia normocítica e normocrômica. Caso o VCM esteja baixo, pode haver anemia ferropriva associada. O esfregaço vai indicar presença de drepanócitos, assim como hemácias em alvo, que também será indicado no hemograma. Mas é imperante saber que a ausência dessas duas formas de hemácias não exclui o diagnóstico. A presença de hemácias nucleadas é sinal de eritropeioese acelerada e tendência ao desvio para a esquerda.  Leucocitose de 6.000 a 20.000 pode ser encontrado, assim como a trombocitose. Essa trombocitose pode ocorrer no hipoesplenismo, pois o baço normal é um reservatório de plaquetas, não o sendo na doença falciforme. O VHS, geralmente e paradoxalmente, é normal.

O teste do afoiçamento pode ser requisitado, mas a confirmação mesmo é feita com a eletroforese de hemoglobina, que revela o percentual de HbS e outros tipos de hemoglobina.

Na suspeita de síndrome torácica deve-se solicitar o raio-x de tórax, hemograma com contagem de reticulócitos e hemocultura.


TRATAMENTO

Deve-se começar com medidas preventivas, que é a atualização dos esquemas vacinais, com ênfase na anti-pneumiocócica. A prescrição de penicilina via oral na dose de 125 mg duas vezes ao dia em crianças acima de dois ou três meses se mostrou ter grande impacto. A dose deve ser dobrada aos três anos e deve continuar até os cinco anos.

Ácido fólico de 1 a 5 mg ao dia via oral deve ser prescrito. Nas crises de dor deve ser feita hidratação maciça, associada a opiáceos como a morfina na dose de 0,1 a 0,15 mg/Kg de peso de 4/4 horas. Nesses quadros também está indicada a hemotransfusão, que geralmente tem ótima resposta, apesar de temporária.

A dor pode ser tratada em vários níveis. Se for branda o paciente pode ser tratado em casa, tomando o cuidado de ingerir grande quantidade de líquidos, além de ser reavaliados no dia seguinte. Deve-se também reduzir a ansiedade, transmitir a importância do repouso relativo, evitar mudanças bruscas de temperatura, aquecer as articulações doloridas e por fim um anti-inflamatório como a nimesulida. Se a dor é intensa a hidratação deve ser parenteral com soro glicosado a 5%.

Nos casos leves de dor também pode-se utilizar dipirona 4/4 horas com suspensão após 24 horas de ausência de dor. Se a dor é moderada adiciona-se o anti-inflamatório, e se grave adiciona-se a codeína, como o Tylex. Nesses casos a codeína só poderá ser retirada depois de 48 horas sem dor e o anti-inflamatório após 72 horas.

Nos casos de dor intensa também pode ser utilizado oxigenoterapia caso a saturação de O2 esteja rebaixada. Para dessensibilizar a dor pode ser utilizado diazepam na dose de 5 mg ao dia e amitriptilina 25 mg 12/12 horas.

Uma via alterativa, mas de boa resposta é a hidroxiuréia, que induz o organismo a produzir HbF. A dose é de 10 a 30 mg/Kg de peso ao dia, sendo justificado pelo fato da HbF inibir a polimerização da HbS e com isso inibe também o afoiçamento.    Por último há o transplante de medula, que tem sido eficaz somente para os casos mais severos, com evolução, por exemplo para acidentes vasculares isquêmicos.

Prescrição do paciente internado:

1-   Hidratação venosa com soro glicosado a 5% (quantidade a depender do peso e da condição do paciente);
2-   Dipirona ev 01 ampola de 4/4 horas;
3-   Diclofenaco ev 1 ampola 8/8 horas;
4-   Morfina 0,1 mg/Kg ev 4/4 horas;
5-   Monitorar saturação de O2.

Nos casos em que o paciente não pode fazer uso de morfina, deve ser prescrito a metadona 0,1 a 0,2 mg/Kg/ dose IM ou SC 4/4 horas nos primeiros momentos, depois 6/6 horas e depois 8/8 horas.

OBS: deve-se ter extremo cuidado na hidratação do paciente com a síndrome torácica aguda, pois pode-se agravar a dispneia.


REFERÊNCIAS

Brasil. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Manual de Condutas técnicas na doença falciforme. Ministério da Saúde: Brasília, 2006. Disponível em> http://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/livros/pdf/06_0241_M.pdf

Goldman L,  Ausiello D. Cecil: Bases Patologicas das Doenças: Patologia.Tratado de Medicina Interna. 22ªEdição. Rio de Janeiro: elsevier, 2005.

COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.


LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca, 2011.

5 comentários:

Jorge Ramiro disse...

A hidratação é essencial. Há pessoas que não gostam de beber água, mas você tem que beber mate, água ou suco. Eu trabalho em ums restaurantes em moema e eu sempre aconselho as pessoas a beber água, é a bebida mais saudável.

Unknown disse...
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Unknown disse...
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Unknown disse...
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Unknown disse...

Jorge Ramiro, muito salutar a sua postura. Água é essencial não apenas nos casos de doenças, mas remove produtos tóxicos do nosso organismo e conserva a função renal. A hidratação sem economias deve ser um costume. Parabéns!