DEFINIÇÃO
É um processo
inflamatório agudo do pâncreas que pode se disseminar para tecidos adjacentes e
outros órgãos. Pode ocorrer necrose no pâncreas, fato esse ocorrido em 20% dos
casos. Essa necrose é gordurosa e pode atingir área peripancreática, compondo
os critérios de complicação, juntamente com choque, insuficiência pulmonar e
renal. Pode ser formado um pseudocisto com coleção de enzimas pancreáticas que
antecedem granulação e fibrose em aproximadamente quatro semanas. Caso esse
pseudocisto se infecte origina-se o abcesso pancreático, havendo pouca ou
nenhuma necrose, geralmente surgido aproximadamente depois de quatro a seis
semanas do início da pancreatite aguda.
75% dos casos
são causados por colelitíase ou por abuso do álcool, esse último ainda de
mecanismo desconhecido. Quando se trata da doença biliar a proporção de homens
e mulheres é de 1:3, contudo em se tratando do álcool como causa essa proporção
se altera para 6:1. 80 a 90% dos casos de pancreatite aguda se trata de um
quadro leve, também denominada intersticial. Nesse caso a doença é
restrita ao pâncreas, autolimitada, possuindo uma mortalidade em torno de 2%,
porém na dependência de um quadro de fragilidade prévia.
Todo o problema
gira em torno da ativação das enzimas pancreáticas antes da chegada no duodeno.
Essas enzimas são na realidade pró-enzimas e tripsinogênio e se ativadas dentro
do pâncreas promovem autodigestão da glândula. Os mecanismos para evitar esse
evento são: dependência das pró-enzimas de entrar em contato com as
enteroquinases no duodeno para serem ativadas; essas enzimas, mesmo inativadas
são separadas em compartimentos próprios; o pâncreas produz um inibidor de
tripsina para que esse não venha a ter uma ativação precoce; entra em contato
com inibidores enzimáticos produzidos pelo fígado, alfa-1-antitripsina e a
alfa-2-macroglobulina.
A ativação do
tripsinogênio precede a ativação de enzimas ativas, tais como a elastase,
quimiotripsina e fosfolipase A2, sendo esses os autores da catástrofe
pancreática que se segue. Essas enzimas degradam o pâncreas, podendo chegar à
cavidade peritoneal. Isso causa perda de líquido repleto de proteínas para essa
cavidade, o que desequilibra as pressões intravasculares e induz o indivíduo ao
choque. Caso as mesmas enzimas atinjam a circulação, podem alcançar qualquer
órgão e causar o que estaria ocorrendo no pâncreas.
Entendido que a ativação das enzimas pancreáticas antes do momento devido, precisa-se também entender que tal evento ocorre secundário a uma hipoperfusão pancreática, deflagrando uma lesão inicial que precede uma desorganização grave na glândula. A isquemia secundária à privação de oxigênio tem como consequência acúmulo de radicais livres e atração por células polimorfonucleares, ambos constituindo os agressores iniciais.
As principais
interleucinas envolvidas serão a IL-1, 6, 8 e 12, além do fator ativador de
plaquetas e TNF. Como os radicais livres regulam a quantidade de TNF dentro da
glândula o aumento do TNF irá ativar eventos inflamatórios, incitar liberação
de outras citocinas e atrair células de defesa que continuarão a agressão. A
IL-6, por exemplo, é um importante marcador de comprometimento sistêmico, sendo
bom indicativo de mortalidade e de tempo de permanência hospitalar, ou seja é
um fator para avaliação de prognóstico, lembrando apenas de que deve ser dosado
nas primeiras 24 horas após o início dos sintomas. Maior valor ainda se
encontra na dosagem de IL-8, mas nesse caso será preditivo de lesão pancreática
grave.
Dentre as
causas para a pancreatite aguda estão: infecção por áscaris lumbricoides, que
induz à obstrução pancreática, sendo um dos fatores etiológicos mais
importantes em crianças nos países em desenvolvimento; trauma está relacionado
ao surgimento de cistos após um período assintomático de semanas a meses; alteração
anatômica da papila que desemboca no duodeno também está referida como fator
etiológico, pois pode ocorrer que a papila de Vater tenha um diâmetro menor e
com isso não consiga acompanhar a drenagem das enzimas pancreáticas, o que
induz ao acúmulo das mesmas no pâncreas; litíase biliar; hipertrigliceridemia;
atividade auto-imune, esta com quadro clínico semelhante à pancreatite crônica
com dor e elevação de enzimas séricas discretas.
Nos casos
ocorridos por litíase biliar, o evento que deflagra a pancreatite é sempre por
obstrução, porém nem sempre por regurgitação. Ocorre regurgitação por
impactação dos cristais litiásicos, ou pelo edema secundário ao trauma causado
pela passagem dos mesmos pela papila de Vater. A produção contínua de enzimas,
impedida de cair no duodeno, transbordaria para o ducto pancreático principal.
Quando há pancreatite sem refluxo, ocorre que o acúmulo de sais biliares nos
ductos pancreáticos leva a sua captação desses pelas células pancreáticas e com
isso aumento do cálcio citoplasmático. O resultado seria, por exemplo, uma
ativação de mitocôndrias e liberação de radicais livres que deflagrariam
necrose.
DIGNÓSTICO
CLÍNICO
Na
pancreatite o exame clínico tem grande importância, pois nas primeiras 24 horas
possibilita identificar 30 a 40% dos casos e se passadas 48 horas esse valor
aumenta para quase todos.
O primeiro
sinal é a dor abdominal localizada em toda a porção superior do abdome com
irradiação para o dorso (dor em faixa). Ocorre após as refeições e dura por 6 a 8 horas. Essa
dor geralmente melhora quando o paciente se curva para frente. Quando a
pancreatite é causada por álcool, costuma surgir com 24 a 72 horas após
episódio de grande consumo. Mesmo assim inicialmente a palpação do abdome não é
dolorosa. As náuseas e vômitos podem ser intensos o suficiente para agravar de
maneira importante a hipovolemia ocorrida quando há extravasamento de líquido
hiperproteico para o terceiro espaço.
Após 48 a 72
horas podem surgir eventos hemorrágicos, manifestados como os sinais de Cullen
– equimose de coloração azul e preta na região periumbilical – e Grey Turner –
equimose de mesma aparência em flancos. Essas manifestações evoluem quando há
hemorragia retroperitoneal, o que indica pancreatite grave.
A icterícia
ocorre em 25% dos casos, e praticamente todos ocorrem quando o paciente cursa
com litíase biliar. Hemorragia digestiva alta pode ocorrer secundária a vômitos
intensos por síndrome de Mallory-Weiss. Confusão mental geralmente se dá por
conta da perda de eletrólitos pelo conteúdo emético.
Os
leucotrienos C4 e D4 juntamente com as cininas liberadas no processo
inflamatório vão acrescer a tendência ao choque por conta da vasodilatação e do
efeito depressor sobre a contratilidade cardíaca. Outra repercussão sistêmica é
a ocorrida nos pulmões, onde a presença da fosfolipase A2 degradará o
surfactante e induzirá a atelectasias e derrame pleural, e com isso o nível de
oxigênio nas artérias também cairá. Com essa hipoxemia poderá suceder também a
insuficiência renal com necrose tubular. Quando a tripsina chega aos rins
também agrava a isquemia por ativar o sistema de coagulação, depositando
fibrina nos gromérulos e obstruindo-os.
Como dito
antes se as enzimas pancreáticas caíssem na corrente sanguínea, órgãos à
distância iriam ser atingidos. Além do pulmão e rins, já citados, há também
agressões na pele e articulações. Esse evento vai induzir à necrose de tecidos,
e como os tecidos necrosados tem grande afinidade por íons de cálcio, muitos
pacientes vão cursar com queda dos níveis desse eletrólito, chegando ao ponto
de causar tetania.
LABORATORIAL
Em se
tratando de avaliação laboratorial, a dosagem de amilase e lipase séricas tem
grande valor. Caso o valor de qualquer um dos dois estiver três vezes acima do
valor normal, tem-se indicativo de pancreatite aguda. Caso os níveis estiverem pouco elevados,
mesmo no início dos sintomas as patologias associadas serão a perfuração
gástrica por úlcera ou doença de Crohn. No entanto, é pertinente saber que essa
elevação não é proporcional ao nível de comprometimento pancreático. Se o
aumento do nível de amilase sérica persistir por mais de sete dias, pode-se
estar diante de um quadro de pseudocisto, principalmente na ocorrência de massa
abdominal palpável.
De acordo com
a fisiopatologia da pancreatite aguda, os outros exames que devem ser
solicitados são: hemograma completo, dosagem de eletrólitos (especialmente o
cálcio por sua afinidade com tecidos necrosados), uréia, creatinina, glicemia,
proteínas totais e frações, enzimas hepáticas, gama-GT, fosfatase alcalina,
bilirrubinas totais e frações e a gasometria arterial seriada nos casos graves.
Quando os
níveis de AST e ALT estão aumentados sugere-se litíase biliar, principalmente
se as crises de pancreatite aguda são recidivantes.
Para
critérios de gravidade são dosados a metamalbumina, a alfa-2-macroglobulina
e alfa-1-antitripsina,
proteína
C reativa, peptídeo ativador de pepsinogênio e elastase granulocítica. A
fosfolipase A2, peptídeo ativador de tripsinogênio e peptídeo ativador das carboxipeptidases,
testes de IL-6 e 8, além da proteína C reativa já citada são marcadores de
gravidade específicos. Pode-se ainda avaliar o paciente 24 horas após o
internamento através do sistema APACHE II. Nela uma pontuação de 0 a 6 adquirida
a partir da faixa etária é somada aos seguintes critérios: temperatura retal,
P.A. média, frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão de O2, pH
arterial, sódio sérico, potássio sérico, creatinina sérica, hematócrito,
leucócitos e coma, além do terceiro grupo de critérios que sáo doenças
associadas. As alterações fisiológicas
são seguidas por existência ou não de doenças associadas. Caso o escore obtiver
uma pontuação de 8 ou mais, haverá pancreatite aguda grave.
O raio-x é
mais utilizado para diagnóstico diferencial, pois na pancreatite leve ele não
vai estar alterado. O USG tem grande valia, pois possibilita a visualização de
coleções líquidas, aumento segmentar do órgão, mas os pontos de necrose podem
ser de difícil visualização devido à sobreposição das alças intestinais sobre o
pâncreas.
A TC de
abdome com contraste apresenta positividade de 15 a 30% dos casos de
pancreatite leve, mas nos casos moderados a graves a acurácia é adequada.
Possibilita a visualização do aumento do volume do pâncreas, coleções líquidas,
borramento de gorduras e áreas não captantes de contraste, que são sugestivas
de necrose.
TRATAMENTO
O primeiro
pensamento após a chegada do paciente é o tratamento dos sintomas. Pode-se
utilizar o cloridrato de tramadol na dose de 50 a 100 mg 6/6 horas com infusão
lenta. Como a morfina causa contração esfíncter de Oddi, ela deve ser evitada.
Deve haver
pronta reposição maciça de volume, com o uso de solução fisiológica ou ringer
lactato, pois tal manobra irá favorecer a reperfusão do pâncreas. Caso a
pancreatite seja grave deve-se utilizar cristaloides, tais como a albumina ou dextrano.
Essa manobra promove nefroproteção e reperfusão pancreática. Caso o paciente
curse com oligúria deve utilizar dopamina na dose de 3 a 5 microgramas/Kg/min.
O uso de
antibióticos deve ser restrito aos idosos, imunodeprimidos e pancreatite aguda
grave. O antibiótico que mais se distribui para o tecido pancreático é o
imipenem 500 mg de 8/8 horas, pois ainda é eficaz tanto para aeróbios como
anaeróbios, com sua função baseada na inibição da parede celular, além de ter
efeito bactericida contra Gran-positivos também. Na segunda opção pode-se
utilizar o ciprofloxacino 500 mg 12/12 horas e metronidazol 250 ou 500 mg 8/8
horas, lembrando que para esses casos a utilização da quinolona deve ocorrer
por três semanas. No entanto, os estudos indicaram que mesmo diminuído a infecção,
não houve diminuição dos índices de mortalidade.
Caso a
pancreatite seja de origem biliar, estará indicada cirurgia de colecistectomia
precoce, mas apenas após a normalização da amilase sérica.
A alimentação
desses pacientes já foi priorizada a nutrição parenteral total, mas estudos recentes
já concluíram, com grande margem de segurança, que os riscos de infecção
superam os benefícios. O uso de sonda nasoenteral, com introdução na altura ou
próximo ao ângulo de Treitz evita a indução da produção de enzimas
pancreáticas.
REFERÊNCIAS
LOPES,
Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São Paulo: Rocca,
2011;
COTRAN, R.S; Kumar V; COLLINS, T.
Robbins. Bases Patológicas das
Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005;
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