DOENÇAS CEREBROVASCULARES
Figuras 01 e 1.1: Polígono de Willis
O termo abrange qualquer
anormalidade no tecido cerebral causada por fragilidade vascular, incluídas aí
três eventos principais: trombose, embolia e hemorragia. Quando ocorre um
evento agudo por privação de oxigênio ou por hemorragia, temos o acidente
vascular. A privação é o termo chave, pois o cérebro é um órgão de grande
demanda, pois no repouso, apesar de corresponder a apenas 5% do peso do corpo,
termina por consumir 20% de todo o oxigênio disponível. Enfim, a privação se dá
por meios funcionais que abrangem baixa disponibilidade ambiental de O2,
deficiência da capacidade de carreamento do gás pelo organismo ou inibição da
utilização de O2 pelas células; pode ser ainda uma privação do fluxo sanguíneo
normal, gerando isquemia transitória ou permanente, mas sempre com queda da
pressão de perfusão. Daí caso a circulação colateral criada com o polígono de Willis (figura 01) não dê conta de
reestabelecer o fluxo vai haver isquemia, que é o problema em questão.
Figura 02: Disposição de vasos que possibilitam uma circulação secundária nos casos de oclusão vascular.
Essa isquemia, então pode ser global
ou generalizada; ou focal, quando há
redução fluxo de sangue para área específica. Essa última ocorre por conta de
patologias nos grandes vasos, como a aterosclerose (figura 03), ou de pequenos vasos na
ocorrência de vasculite ou oclusão secundária à arteriosclerose. Se a
hipoperfusão for transitória, por no máximo 5 minutos e sem a ocorrência de
hiperglicemia o organismo se recupera bem, com ausência de lesões
irreversíveis. Algumas células são mais suscetíveis que outras, como o
neurônio, o oligodendrócito e o astrócito, podendo ocorrer isquemia de algumas
dessas, mesmo na privação discreta caracterizando a vulnerabilidade seletiva.
Quando então ocorre a isquemia
ela possui três caraterísticas sequenciais: alterações precoces, ocorrem 12
a 24 horas após o evento deflagrador, ocorrendo microvacuolização,
eosinofilia, picnose nuclear (cromatina condensada da célula em degeneração) e
cariorrexis (fragmentação da cromatina e disseminação pelo citoplasma) e por
último ocorre a infiltração de neutrófilos. Alterações subagudas ocorrem de 24 horas até 2 semanas, com necrose
do tecido, influxo de macrófagos, proliferação vascular e gliose reacional. A
última fase é o reparo, sendo a remoção de todo o tecido necrótico pelas
células de defesa, com substituição do tecido lesionado por cicatricial ou
cavidade.
Ocorrem também reações
específicas pós-necrose no tecido cerebral, por exemplo, a liberação de
neurotransmissores excitatórios, como o glutamato. Isso causa hiperestimulação
dos canais iônicos de cálcio, determinando entrada excessiva do eletrólito e
consequente morte da célula pela ativação de proteases, lipases, endonucleases,
proteínas fosfatases e proteína cinase C, além de induzir a expressão de genes
de ação imediata. Isso também é explicado porque com a parada no fornecimento
de oxigênio são exauridas as moléculas de ATP e com isso se perde a homeostase
das bombas.
EPIDEMIOLOGIA BRASILEIRA DO ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL (AVC)
Antônio Carlos Lopes em seu
tratado de clínica médica afirma que esse evento é a principal causa de óbitos
no país, com prevalência em São Paulo de 172:100.000 habitantes e em Salvador
de 168:100.000, com mortalidade variando de 44,7 a 128,9:100.000 habitantes.
Afirma também que após a ocorrência de AVC, 31% dos pacientes evoluem para
óbito no período de um ano.
Os fatores de risco estão
relacionados com as causas bases como a aterosclerose, as fontes embólicas,
inflamações arteriais e hemorragias. 70% dos casos estão relacionados com a
hipertensão. Quanto às cardiopatias a principal é a fibrilação atrial e quando
existem próteses valvares. Diabetes, tabagismo, dislipidemias, discrasias
sanguíneas, alcoolismo excessivo, hiperhomocistenemia, alterações das proteínas
C, S e aPC. Também se incluem obesidade, síndromes metabólicas, drogadição
ilícita, sedentarismo e iatrogenia medicamentosa.
ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL (AVC) ISQUÊMICO
Segundo o Cecil, essa patologia
se caracteriza simplesmente por fluxo insuficiente em parte ou em todo o
cérebro. É necessário se preocupar em diferenciá-la do ataque isquêmico transitório (AIT), que é um evento cujos
resultados clínicos se resolvem em menos de 24 horas. Mas deve-se ter atenção
para a ênfase clínica, que é
corrigida com o estabelecimento da circulação colateral, pois na ocorrência de
privações por mais de 1 ou 2 horas a ressonância e a tomografia irão demonstrar
danos permanentes independente da velocidade de recuperação do indivíduo.
Outra diferenciação é daqueles
acidentes vasculares hemorrágicos, os famosos derrames, pois haverá presença de
sangue no parênquima (tecido que exerce a função específica do órgão) formando
uma meningite química asséptica que pode ou não evoluir com vasoespasmo. Se
esse último ocorrer e for grave o bastante ele conduz o indivíduo ao óbito.
Além disso, as regiões mais distantes que eram supridas pelos vasos rompidos
sofrem com a deficiência do aporte de oxigênio. Como o sangue extravasado é um
tecido morto ele deve ser eliminado e com isso o parênquima acaba sendo
lesionado também. O resultado dessa depuração local é um edema e aumento da
pressão intracraniana que pode condicionar uma síndrome de herniação cerebral
de caráter mortal.
Com a exigência dos 20% do
oxigênio disponível já citada, o cérebro alcança um fluxo de 100 a 50
ml/min/100g de tecido cerebral. Se o fluxo está entre 22 a 10 ml/min/100g já se
faz um estado isquêmico discreto chamado de área de penumbra, onde existe uma
janela terapêutica temporária de poucas horas com possibilidade de recuperação
total das células se o tratamento for iniciado. Caso o fluxo esteja abaixo de
10 ml/min/100g a isquemia já estará instalada.
Fato interessante a saber sobre o
edema secundário ao AVC isquêmico é que ocorre o inverso do restante do corpo,
começando com o padrão intracelular devido à entrada descontrolada de
eletrólitos na célula. A segunda fase ocorre devido ao processo inflamatório
que induz a passagem de proteínas do espaço intra para o extravascular
intersticial, que conduz, por osmolaridade, difusão da água para o parênquima e
constituindo o edema propriamente dito.
No AVC isquêmico ocorre também um
insulto inflamatório que libera primimeiramente interleucina 1-beta e fator de
necrose tumoral (TNF), depois são liberadas as interleucinas Il-6 e Il-8. Todas
provocam invasão de leucócitos, expressão de moléculas de adesão celular e
trombogênese. Os leucócitos que aderem ao endotélio o lesam para adentrar no
parênquima onde ocorreu a evento isquêmico (icto isquêmico), aumentando o
estado trombótico. As interleucina 6 e o TNF, de alguma maneira estão
relacionadas à expressão de enzimas matriz-metaloproteinases, principalmente MMP2
e MMP9, degradam a matriz que envolve os trombos e o endotélio adjacente
causando modificação de AVC isquêmico para hemorrágico. Outra questão
envolvendo as citocinas relacionadas é a liberação de moléculas de endotelina,
que induzem à vasoconstricção e piora da privação de oxigênio.
O AVC isquêmico pode ocorrer pelo
desprendimento de trombos que se formam no próprio cérebro em placas
ateroscleróticas e embolia criada pelo mesmo quando oclui um vaso sanguíneo. Pode
também ocorrer por um coagulo que se solta e termina com a mesma oclusão. Esses
tipos de eventos são responsáveis por 65% de todos os AVCs. Os advindos de
trombos murais (trombos advindos da região endocárdica e criados por processo
inflamatório consequente ao infarto), que se soltam do coração e causam oclusão
de vasos cerebrais representam 20% do total de AVCs e os outros 15% ocorrem por
hemorragias. Se o trombo ocorre em um vaso pequeno os sintomas são mais
passíveis de ocorrer, pois esses locais não possuem circulação colateral. Caso
ocorra nos vasos de maior calibre os sintomas serão mais graves. Os locais mais
frequentes fora do tecido cerebral são a base da aorta, a bifurcação da artéria
carótida comum (figura 04) e na origem das subclávias.
Infelizmente não é possível dar
um prognóstico de um AIT ou AVC no início dos sintomas, mesmo porque as
manifestações podem melhor ou piorar, o que pode induzir ao atraso da procura
por ajuda médica e ao esgotamento do limite de tempo para tratamento agudo.
Dias ou semanas depois da estabilização do evento o paciente pode ainda
apresentar agravamento do quadro neurológico, caracterizando o “AVC
em evolução”, dando a ideia de outros AVCs ocorrendo, ou ainda eventos
que se assemelham ao quadro clínico em questão, que são distúrbios
hidroeletrolíticos e glicêmicos. É importante saber também que se outros AVCs
ocorrerem dentro dos limites do primeiro evento, não haverá agravamento nem
manifestações de outros sinais.
Outras causas envolvidas na
gênese do AVC são: 1- cardiopatias valvares: podem criar êmbolos na doença
reumática; a endocardite infecciosa pode gerar uma vegetação na valva que se
solta e viaja até o cérebro; 2- aterosclerose; 3- fibrilação atrial, que
independente de qualquer outra condição pode ocasionar embolização cerebral,
não sendo frequentes, mas geralmente cursam com sequelas incapacitantes de
elevada importância; 4- embolia paradoxal, quando um trombo se solta da
circulação venosa e entra na arterial, geralmente por resquício do forame oval
e alguma comunicação interatrial. O forame oval patente está presente em 40%
dos pacientes com AVC embólico de origem indeterminada.
Figura 04: imagem de artérias envolvidas no acidente vascular cerebral isquêmico.
CLÍNICA DO AVE ISQUÊMICO
A artéria mais comum de sofrer danos ateroscleróticos com repercussão
de acidentes vasculares cerebrais é a carótida interna. Como a artéria
oftálmica nasce dela, os AITs podem se manifestar como uma cegueira monocular
transitória referida no exame físico como amaurose
fugaz. Isso em geral ocorre, pois se o polígono de Willis estiver completo,
o corpo consegue estabelecer uma circulação colateral eficaz.
As oclusões da artéria
comunicante anterior são responsáveis por apenas 2% de todos os AVCs, mas
quando ocorre costuma ser bilateral, pois as origens das duas artérias
comunicantes são separadas por apenas um pequeno segmento de vaso, além de que
em muitas pessoas há apenas uma origem para as duas artérias comunicantes. Os
sintomas relacionados à oclusão desses ramos são: fraqueza do neurônio motor
inferior no membro inferior contralateral, incontinência urinária, depressão
geral psicomotora (abulia), perda da fluência verbal.
A oclusão da artéria cerebral média é responsável por dois terços de
todos os AVCs focais. Nesse tipo, a isquemia com frequência é de grande
importância no que diz respeito ao tamanho da área afetada, causando edema que
pode induzir à herniação cerebral quando ultrapassa três ou quatro dias. Os
sintomas envolvem perda de sensibilidade
de face e de membro inferior, hemianopsia homônima do lado da fraqueza,
rebaixamento do nível de consciência e desvio do olhar para o lado da lesão.
Nos destros a oclusão do ramo esquerdo
produz afasia global. O AVC da metade inferior do hemisfério dominante
forma afasia de recepção ou de Wernick, que é grave perda da compreensão da fala
e manutenção da linguagem falada e escrita. A lesão em qualquer hemisfério
causa perda da sensibilidade integrada contralateral, a exemplo da percepção de
formas. Esse sinal é a esterognosia.
O AVC que se relaciona com a artéria cerebral posterior possui
diversas manifestações porque existem duas possibilidades da origem da mesma:
ou as duas se originam na artéria basilar, ou apenas uma se origina, com a
outra surgindo da carótida interna. AVCs nesses ramos podem causar
hemianestesia contralateral completa e hemianopsia do mesmo lado. Pode haver
também dislexia – dificuldade de ler – e
discalculia – dificuldade de realizar cálculos.
A oclusão das artérias vertebral e basilar causa síndromes cruzadas, quando a perda
de força e sensibilidade ocorre contralateral à lesão. Tanto a artéria cerebelar posterior quanto a
vertebral vão produzir infarto
bulbar, que se caracteriza por vertigem, náuseas, vômitos, ataxia ipsolateral e
síndrome de Horner – ptose, miose e diminuição da sudorese do mesmo lado
acometido. Nesta síndrome também vai haver perda de sensibilidade no tronco, só
que contralateral.
A oclusão da artéria basilar irá ter graves
consequências, não importando o tamanho da oclusão, pois o tronco cerebral
é suprido por seus ramos. Daí o AVC nestes locais irá se apresentar com paralisia ou paresia dos membros,
comprometimento da visão, ataxia cerebelar e transtornos sensitivos que podem
ir até a anestesia total. A síndrome
do cativeiro também pode ocorrer, sendo um quadro de manutenção da
consciência, mas com a possibilidade de movimentação apenas das pálpebras e
olhos.
DIAGNÓSTICO
A tomografia computadorizada (TC)
deve ser realizada o quanto antes, devendo ser repetida dentro de 24-48 horas
quando não houver alterações no exame inicial, porém com presença de sintomas.
Sua melhor fidedignidade se relaciona com eventos hemorrágicos. Já a melhor
resolução para isquemia na fase aguda é a ressonância nuclear magnética (RNM).
Esse exame permite a identificação do edema poucos minutos após a instalação do
icto. Como a ressonância é um exame mais complexo e demorado em relação à TC,
esse último exame poderá também referir o diagnóstico de AVC isquêmico pela
exclusão do hemorrágico.
A investigação etiológica deve
suceder ao início do tratamento tamanha é a urgência do quadro. Após isso a
investigação pode ser feita com ultrassonografia com Doppler de artérias
carótidas e vertebrais. O ECG, o ecocardiograma com doppler transtorácico ou transesofágico
e o raio-x de tórax devem ser realizados antes da alta do paciente.
Recomenda-se os seguintes exames
em caráter de emergência: hemograma completo, coagulograma, creatinina,
glicose, uréia e gasometria arterial. Caso ainda haja suspeita da trombose após
o tratamento solicita-se fibrinogênio.
TRATAMENTO
Os cuidados começam com o
controle da tensão arterial. Isso pode ser feito com captopril, enalapril,
motoprolol e clonidina. Mas é importante saber que não devem ser prescritos a
menos que os níveis tensionais estejam acima de 220X120 mmHg ou 185X105 mmHg
para os pacientes com acidentes hemorrágicos ou candidatos à trombólise. Isso
porque rebaixando a tensão arterial também seriam rebaixadas as pressões
parciais e com isso haveria diminuição da perfusão. A nifedipina não é indicada.
A elevação da temperatura e
glicemia devem ser sistematicamente evitadas. A aspiração traqueal é causa
importante de complicação, por isso a cabeceira deve ser elevada em 40° e
deve-se realizar aspiração traqueal quando necessário.
A trombólise é o único tratamento
específico para o AVC na fase aguda, porém, somente deve ser usado por via
intravenosa até 3h após o evento inicial, o icto isquêmico. Dentre as vantagens
desse medicamento está de aumentar a janela terapêutica em até 6h, aquela mesma
em que existe a zona de penumbra e que se pode recuperar as células. O
tratamento é feito com ativador de plasminogênio tecidual recombinante na dose
de 0,9 mg/Kg com dose máxima de 90 mg. 10% são injetados em bolus e o restante
é injetado diluído no soro num período de 1 hora.
Os antiagregantes plaquetários
são utilizados e o mais comum é o AAS. Já o uso da anticoagulação na fase aguda
é discutível, a não ser que já tenha sido comprovado o evento embólico de
origem cardíaca, coagulopatias resistentes, trombose em progressão, dissecção
arterial e trombose venosa. A dose da
heparina segue o esquema a seguir: 5.000
Ui/ml em dose de ataque com 1 a 2 ml IV. A dose de manutenção é de 1,0
ml IV de 4/4 horas ou 1,2 ml diluídos em 120 ml em solução fisiológica a 0,9% através de bomba de infusão de 20 ml/hora. Deve-se acompanhar a
terapeutca com a avaliação do coagulograma
diário, que deve estar entre 1,5 a
2,3. Manter a heparina IV e introduzir o anticoagulante
oral no D4, tal como o warfarin 3
comp VO ao dia no D1, 2 comp VO no D2 a a partir daí 1 com VO ao dia. O
TTPa, RNI e TAP devem ser acompanhados diariamente também. A partir do D7 deve-se manter apenas o anoticoagulante oral por 3 a 6
meses.
Para combater a principal
complicação, que é o edema, é utilizado o glicerol intravenoso na dose de 1,0 a
1,5 g/dia em três administrações e por período de cinco a dez dias após o icto.
A dexametasona já foi utilizada na fase aguda, mas hoje é contraindicada.
Por fim a cirurgia é indicada
quando á necessidade de drenagem de hematoma de grandes proporções.
RFERÊNCIAS
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GAGLIARDI, RJ; RAFFIN, CN; C., Fábio
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acessado em 12 de maio de 2013.
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