Um olhar no branco, um arrepio penetrante, uma lança marcada
com sangue, uma força que a leva onde ninguém ergue, um instinto arredio que as
ruínas do mundo não dominavam, uma história de quem jamais possuiu lar. Um
branco aparentemente infinito cortado por um caminho de água, a qual clima
nenhum conseguia congelar, duas árvores no horizonte indicando o caminho ao
lado do leito do rio, e um coração que não aceitava os erros de outrora. Uma
persistência infinita em se redimir, uma força de vontade autossuficiente, um
caminho que, de tão longo e mortal, ninguém mais ousaria percorrer. Mas onde
dinheiro não possuía valor, a amizade de poucos não poderia ser comprada mesmo
se a moeda existisse.
Do outro lado alguém sem força física ofereceu sua beleza por
uma morte sem sofrimento. Uma troca realizada por um povo a viver da injúria,
da caça humana, da certeza de sua força a obrigar a protegida a se entregar. Ela
havia vislumbrado a paz numa terra de guerra, mas a viu esvair nas mãos do
ladrão de falsa piedade. Uma mão de unhas quebradas, virgindade tirada à força,
cabelo vermelho lembrando o calor interior emanado tão naturalmente a ponto de
despertar a inveja e cobiça dos de coração impuro. Uma distância daquele cuja
morte deu-se por certo, culminando num desespero sem fim.
Entre eles os escombros das aldeias erguidas por centenas de
quilômetros enfeitavam uma terra com potencial falido para a prosperidade
chamada de NUNKA, onde os únicos respeitados eram os idosos, pois a sobrevivência
era uma das poucas qualidades reconhecidas dentro do inferno frio. Nesse mesmo
lugar a força levava à guerra e a guerra levava à força. Na grande batalha a
maioria morreu e a harmonia tornou-se tão rara quanto a visão livre do sol. Nas
montanhas brancas os deslizamentos antesseguidos de gritos era sinal do
suicídio consentido dos menos fortes, e as pontas das árvores erguidas do chão
elevado faziam-nas parecer ter um metro ao invés de dez, ao mesmo tempo em que
distantes à frente pedaços de verde davam ideia da vida teimosa em existir. Algumas
aldeias de pessoas raivosas se desorganizavam ao longo do caminho de água que
não congelava. Se uma crescia demais
deparava com outra a enxergar sua prosperidade como uma afronta, e assim se
erguiam as guerras e a involução do mundo que se retroalimentava.
Esse era o caminho: um revezamento entre o verde e o gelo, um
frio que não respeitava distâncias, uma disputa contínua entre arrogâncias. Era
o traçado entre o protetor e a protegida.
Uma pele de animal morto respeitosamente servira contra o
frio, óculos improvisado como proteção do vento, uma lança que se dobrava, uma
astúcia ímpar a elevar uma força de mediana a descomunal, e por fim a certeza
de que se afastar do rio por muito tempo significaria morrer congelado. Um
olhar para o horizonte, uma despedida em cumprimento marcial, passo dado para
frente e o medo proposital para transformar a sobrevivência em regra. Os
quilômetros traziam a primeira aldeia vazia e a segunda, deleitada sobre a
estátua de guerreiro com arco nas costas, punhos cerrados, vestes escocesas e a
ideia falsa da justiça há muito derrubada. O protetor se escondeu, percorreu as
seis primeiras moradias sem problemas quando então deparou-se com a mão
levantada contra uma criança. Uma mão que varria o ar enquanto suas lembranças
de posturas injustas lhe vinham à mente junto com a imagem daquela a lhe
mostrar como amor confronta a dor sem amarras, como a mão estendida fazia valer
viver até mesmo naquele mundo. Lembrava a fé inconteste. Então seguiu-se a
primeira batalha, a primeira gota derramada ao lado de um sorriso de
agradecimento e uma mostra da direção a seguir.
Do outro lado a protegida se mantinha de pé enquanto a
opressão se erguia diante dos seus olhos. Chegava numa aldeia onde o idoso se
valia de sabedoria egoísta para apontar o dedo e mentir em função de seus
interesses. Lembrava como fez a vida ressurgir no protetor aparentemente caído,
como o amava, ou quando o fez enxergar a força oculta dos que sabem falar o que
se precisa ouvir. Numa visão distante arrastava seu protetor em esforço supremo
para longe da batalha perdida. Foi quando o viu pela primeira vez e
instintivamente acreditou no seu potencial para a paz. Curou suas feridas,
criou uma fidelidade perene, ganhou um irmão. Recordou tudo enquanto provava,
numa discussão exaltada por homens cegos, a fraqueza das vozes altivas diante
de um suspiro calmo.
A protegida constantemente se via diante de questões
exaltadas por seus opressores, até quando teve coragem de expor seus
pensamentos e de repente estava diante de uma plateia imóvel, iluminada por
pequenas labaredas penduradas nas paredes que deixavam a mostra as mais
variadas expressões, desde concordância a ódio pela percepção do sussurro do
ser de sexo oposto. Porém, sua razão, seu queixo erguido em ousadia
explicada pela anterior convivência com o mais forte a manteve viva, contudo
não oprimida. Sua jaula tornou-se casa e ao menos parou de viajar para ser
consultada discretamente por homens limitados, mas com sensibilidade suficiente
para saber que os pensamentos daquela mulher os faria crescer. Seu principal
opressor estava sempre alí, não alto demais nem de menos, boa postura,
verdadeira beleza física, verdadeira maldade num coração cheio de princípios
obscuros que o fizera ser respeitado pela força.
Bem atrás seu protetor seguia o rio na certeza de ser aquele
o único caminho possível para os raptores. Havia pessoas no seu rastro,
predadores hábeis, tristes sem saber. Roupas semelhantes às suas, diferentes
formas de aquisição. Um olhar concentrado, instinto atento, adrenalina exaltada,
insensibilidade momentânea ao frio, uma lança erguida, um confronto direto,
gota de sangue sobre a grama ascendida do gelo, grito de persistência ao ar e
mais metros a percorrer. Quando o branco ficou para trás o verde entre as montanhas
destacava o rio quente não mais a lhe interessar. O caminho deixara de ser óbvio
e por isso as pistas deveriam ser conquistadas. À frente uma grande pedra
esculpida em forma de lobo servira de ponto de vista a observar indícios da
passagem daqueles a alcançar, mas servia também de aviso dos
limites de homens que se armavam como ele, com lanças. Os mais perigosos.
Apesar do preparo físico ele cansou, no sexto dia de
caminhada, das dormidas em posição de meditação, das pernas dormentes ao
amanhecer, da parca comida, mas sua força de vontade não o deixava pestanejar
por segundo sequer. Sua força interior era alimentada pela chama das lembranças
de um sorriso que destoava do mundo ao redor, do cabelo vermelho por demais em
contato com a água, da linda nudez sem conotação sexual, do primeiro sorriso
arrancado de seus lábios desde que a vida tirou-lhe a inocência como preço para
sobreviver.
Tudo isso dava-lhe o controle para enxergar na natureza a
fonte renovadora de ânimo. Então a água doce do riacho límpido e a carne pura
dos coelhos mortos com ética e reverência devolveram-lhe o que faltava. Iria
precisar, pois estava em terra de lobos, onde a fúria de seu corporativismo e
habilidade de suas mãos os mantinham temidos e afastados de qualquer outra
aldeia. Tencionava rastejar sem ser percebido, mas infelizmente não foi assim.
O som do mar demonstrava seu choque com as pedras no fim do despenhadeiro
ao lado da mata fechada em que se escondia. As árvores soltavam um cheiro
agradável que lembrava feno, o chão era coberto pelas mesmas folhas a lhe
obrigar percorrer os grandes braços de madeira para não deixar rastros no chão.
E foi diminuindo lenta e silenciosamente a distância da protegida que a brisa
do mar concentrou seu cheiro para ser percebido por outro guerreiro a percorrer
o alto das árvores. E de repente eles estavam de rostos encarados. Um olhar ao
redor, um plano, a visão das folhas caindo devagar como se o tempo transpassasse
a noção que se tem dele. O couro de animal arrancado dos ombros para dar mais
leveza, tórax despido, base montada, o reconhecimento mútuo do oponente que
nasceu na dor e aprendeu a não só extrair dela os ingredientes para sobreviver,
mas também as lições para tornar-se aprendiz permanente para não cair em
batalha. Uma reverência discreta com a mão aberta ao longo da coxa, uma lança
desdobrada lentamente, a espera angustiante do confronto inevitável. Um salto à
árvore vizinha, metros avançados, respirações controladas, mundo inaudível, uma
mão sobre o pescoço enquanto outra fazia a lança viajar em vão até o pescoço do
protetor. Lanças em choque, saltos para o lado, galhos de árvores servindo de
apoio, pés viajando no ar, uma perseguição breve, a imagem de ser alcançado
pelo oponente hábil, um pé transpassado e finalmente um corpo no chão.
Seguiram-se a respiração ofegante incontrolável e uma lembrança turva de uma
lição de valor da vida antes erguida de uma figura vermelha.
O protetor ficou de pé sobre o corpo do oponente certo de sua
morte, mas assim não foi. Então outra reverência fora feita, lanças trocadas,
segredo confesso, um companheiro ganho, uma indicação cedida e a certeza de
qual direção seguir. Criou-se então outra fidelidade eterna. Vinte horas depois
veio o último sono, enterrado para não ser percebido, respirando por uma graça
em forma de galho oco.
Enquanto isso a protegida olhava para a chama na parede
tentando reunir concentração para focar a imagem que lhe representava força. A
ideia era: se o fogo tudo queima, ela tudo pode suportar. Seu nariz quebrado
simbolizava o poder da verdade a derrubar músculos, a coragem exótica em
manter-se de pé, uma saudade insuportável embebida de infinita ânsia por
vingança. Uma raiva acrescida a cada agressão, uma falsa colaboração em dizer o
que o opressor precisava ouvir, uma certeza de vida até o dia em que escolhesse
perecer.
Mas de repente tambores tocam, gritos estridentes de aviso
ecoam pelos muros seguidos a sua jaula. O rosto do opressor mostrava olhos de
quem não gosta do mundo sem saber, o que não lhe tirava nem a maldade, nem a
culpa de suas costas. Ele correu, subiu as escadas de madeira em espiral que
davam para uma espécie de torre de observação para se deparar com o que seus
olhos nunca esperavam enxergar: ao longo do bosque castigado pela friagem,
erguido das árvores um povo com couro de lobos nos ombros e lanças nas mãos
surgia furiosa ao centro. Ele sabia que a maioria não estava alí, pois assim
como era experiente em guerrear, aquele povo também era. No alto de uma das
árvores da última fileira se erguia uma figura que destoava de todo o resto.
Roupas diferentes, mesma lança, olhar a procurar, objetivos diferentes, um
sumisso repentino. Algo estava diferente, pois os lobos não guerreavam a toa, e
por isso provavelmente alguém os convencera de que com o tempo seu povo os
atacaria também.
Do outro lado o protegido, de hábil e sagaz descobrira os
meios para entender onde precisava ir, e assim o fez para então estar de frente
com o opressor. O inimigo o permitira ver o estado da protegida, pois acreditava
que a raiva cresceria dentro do protetor e assim tiraria sua concentração. Mas
infelizmente, para ele, não foi assim, pois naquele momento o protetor havia
voltado a ser o que era antes de ser salvo. Havia voltado a ser o que a
protegida era agora: alguém que vivia para matar.
Ausência de reverência, tórax inflado, expiração calma pela
boca, esforço em acompanhar os rápidos movimentos do inimigo.
Lança contra espada, distância friamente calculada, pés à frente, fogo no
coração, teimosia a não cair. Instinto frio, percepção de defesa aberta, um
ombro oferecido de propósito, uma faca transpassada seguido de um coração
atingido e a protegida divisou o opressor caindo ao chão, vivo ainda por alguns
segundos para encarar os olhos saciados com seu sangue. Lá fora a guerra
evoluía para o reinado dos lobos, enquanto alí dentro um abraço e um beijo
antecedia a visão do sol não deparada há dez dias.
Do lado de fora lanças foram ofertadas ao ar juntos com
gritos de vitória, um chão manchado, referência coletiva, sorrisos de alívios
misturados entre o protetor e a protegida, uma passeata no meio dos guerreiros
que percebiam enxergar pela primeira vez tão grande amor e amizade. No fim, um
olhar para onde o sol estaria escondido, o vislumbre das mãos sujas, da lança
quebrada, e a certeza crescente no protetor de ter encontrado seu verdadeiro
povo.
JAIRO LEÃO 24/03/2013.
00:23
2 comentários:
é um conto romântico? Quem é a protegida?
Não é um conto romântico. Ele fala de amizade de alma.
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