É um
transtorno hereditário causado por uma mutação na hemoglobina, determinando um
comportamento anormal dos eritrócitos. O gene para essa anemia ocorre
preferencialmente em países da África. Nos recém-nascidos afro-americanos dos
Estados Unidos a prevalência vai de 8 a 10%, mas na África Ocidental esse
número vai de 25 a 30%, com 120.000 bebês nascendo com a doença falciforme a
cada ano. Para quem tem a doença falciforme, a expectativa de vida é de 42 anos
para homens e 48 para mulheres.
A doença se
manifesta por conta de uma mutação no cromossomo 6, onde há uma troca do ácido
glutâmico por valina, culminando numa cadeia defeituosa denominada P(s), e por
isso a hemoglobina resultante será chamada de HbS. O resultado básico disso uma deficiência na
capacidade de deformação do eritrócito, ocorrendo nos momentos de dessaturação
de oxigênio, geralmente quando o mesmo passa por uma arteríola ou vênula. Noutros
casos o eritrócito também se adere ao endotélio vascular, causando obstruções. Como
a doença é autossômica recessiva, irão existir dois padrões: heterozigotos
terão o traço falciforme, não havendo nenhum sintoma na maioria das vezes;
homozigotos terão a doença falciforme, esta caracterizada por anemia crônica e
dor recorrente.
Todo o
problema ocorre quando a hemácia perde O2, modificando suas propriedades. Na
presença de oxigênio tanto a HBA (normal) quanto a HbS tem a mesma solubilidade
e capacidade de deformação. Porém, quando a HbS é dessaturada essas duas
características decaem muito. Como a atração entre as moléculas de hemoglobina
aumenta, ocorre polimerização entre as cadeias de globina e com isso a
modificação da forma da hemácia, tonando-a então alongada – ou em forma de foice
– e rígida. Quando a velocidade sanguínea é normal, essa hemácia deformada só
ganha a forma de foice quando alcança as grandes veias, onde recupera oxigênio.
Mas não se pode confundir: o leito microvascular é onde a hemácia perde o
oxigênio, mas a polimerização só ocorre alguns segundos depois, já nas veias, e
lá mesmo se recupera. Isso justifica o porquê de em condições normais os
indivíduos não serem acometidos por obstrução disseminada.
A mutação
ocorre na vida intrauterina, porém, como a hemoglobina fetal (HbF) não
polimeriza como ocorre com a HbS, a doença estará suprimida. No entanto, quando
a criança alcança os seis meses de idade, quando a fração da HbS já alcançou
75% do total, as manifestações se iniciam. Um fato interessante é que a HbF
inibe a polimerização muito mais que a HbA, e inclusive, aqueles indivíduos que
cursam com persistência hereditária da HbF vão ter sintomas mais brandos. Como
a polimerização é função da presença da HbS, os eritrócitos com CHCM
(concentração de hemoglobina corpuscular média) baixa, também terá um fator
limitante.
Em suma, o
composto oxi-HbS não vai ter repercussões falcêmicas, ao contrário das
situações de queda de O2 sanguíneo, quando se forma a desoxi-HbS, onde mora
todo o problema. Os polímeros então se formam em velocidade maior quanto mais
rápida é a condição de desoxigenação. Quanto mais rápido as hemácias perdem
oxigênio, mais núcleos de formação dos polímeros de HbS vão existir, e mais
demorados voltarão à forma inicial. Na realidade alguns nem voltam. São as células
irreversivelmente falcizadas, chamadas de drepanócitos, sendo justamente as
células que possibilitam a identificação da anemia falciforme nos esfregaços
microscópicos.
Figura 02- Fenômeno vásculo oclusivo
Figura 02- Fenômeno vásculo oclusivo
Existem
algumas condições que pioram a queda de oxigênio nos eritrócitos. Na medida em
que mais células vão tomando a forma de foice mais viscoso estará o sangue, o
que dificulta ainda mais o transito de oxigênio. Ocorre também desidratação por
conta de uma perda de potássio que leva consigo o cloro e funciona em
contra-transporte com o cálcio. Isso resulta em rebaixamento do Ph intracelular
e perda de água, sendo manifestado por CHCM de mais de 50g/dl. Deve-se lembrar
que a saturação de O2 pela hemoglobina é função inversa aos ambientes ácidos.
Então quanto menor o volume do eritrócito, menos oxigênio haverá dentro dele,
mais próximos estarão as moléculas de HbS entre si para a polimerização, e assim
mais difícil será a reversão para a forma não-falcizada. Quando essas hemácias
passam pelos rins, onde existe um ambiente hipertônico, a desidratação vai ser agravada,
ocorrendo a falcização até mesmo em eritrócitos apenas com o traço falciforme.
A saída de
cloreto descrita também vai causar uma outra consequência, que é a modificação
elétrica dos eritrócitos. A hemácia que perde mais potássio fica mais positiva
em relação às demais, culminando numa atração magnética com agrupamentos de
células que facilitarão a oclusão de vasos.
As hemácias
com HbS também vão ter uma sobrevida bem menor (20 dias) em relação às normais
HbA (120 dias). Um grande contribuinte para isso são os radicais livres
consequentes da instabilidade da HbS. Essas quando oxidadas geram radicais
livres agressores das proteínas e lipídios da membrana da hemácia, além das
próprias HbSs restantes. Essa oxidação facilita a agregação das hemácias nos
endotélios e nos macrófagos, determinando sua destruição. Na medida em que
alguma hemácia vai se aderindo ao endotélio, neutrófilos se aderem a elas, e
outras hemácias, aquelas irreversivelmente afoisadas, se aderem aos leucócitos.
Isso é tão verdade que em pesquisas foi descoberto a relação direta entre
numero de leucócitos e taxa de mortalidade. Outra questão relacionada aos
leucócitos é a esfoliação do leito vascular no decorrer da doença, gerador de
células circulantes produtoras de fator endotelial ativador de plaquetas e
consequentemente distúrbios de coagulação.
Já hemólise é
o evento mais evidente na anemia falciforme. A oxidação da HbS induz também à
adesão de IgG e moléculas de complemento, ativando macrófagos contra as
hemácias. Com a falcização recorrente das hemácias, gerando células rígidas,
culminam no seu aprisionamento extravascular – no baço – e consequente
destruição. Na realidade a destruição esplênica é responsável por dois terços
de toda a hemólise. Na vigência de inflamações em geral a anemia é exacerbada,
pois nesse caso, a despeito da hemólise contínua, ocorre crises aplásicas por
alguns dias. Infecções pelo parvovírus
B19 levam a esta condição por terem a capacidade de invadir o precursor
mielóide, estando envolvidos em dois terços dos casos. Caso os fenômenos
oclusivos culminem em necrose de medula, a crise aplásica também pode ocorrer,
assim como mudanças bruscas de ambiente e inalação de oxigênio desnecessária
com altas tensões do gás e consequente supressão da produção de eritropoietina,
geralmente em dois dias. Com a capacidade de retenção de sangue pelo baço e fígado,
pode-se ainda ter um caso de hemólise aparente.
Mesmo com essa
quantidade de eventos, o que geralmente leva o paciente aos consultórios são as
crises de dor, em muitos casos o primeiro sintoma. A origem das internações são
variadas: um terço dos pacientes raramente sentem dor, outro terço é internado
de dois a seis vezes no ano e outro terço é internado mais de seis vezes no
ano. É certo que a dor seja causada por vasoclusão, mas o motivo para a crise
vasoclusiva pode ser variado, indo desde a impossibilidade de determinação – a
maioria – até motivos diversos, tais como ingesta alcoólica, menstruação,
estresse, frio, desidratação e infecções em gral. A duração é de alguns dias e
a intensidade pode ir de leve a intensa a ponto de causar desespero, depressão
e apatia. Os pacientes geralmente se apresentam com dor à palpação, febre,
taquipnéia, hipertensão, náusea e vômito.
Um grave
evento gerador de dor é quando a vasoclusão ocorre nos ossos. Essa oclusão
ocorre com frequência no osso trabecular e daí segue a necrose, a exemplo da
necrose da cabeça do fêmur e deformidades em geral, como as vértebras em boca
de peixe, com esse osso tornando-se bicôncavo. A necrose da cabeça do fêmur,
por exemplo, forma uma imagem radiológica semelhante à Legg-Calve-Perses,
inclusive tendo um crescimento secundário de osso mais frágil que vai acarretar
deformação da epífise com o passar dos anos.
A necrose
também ocorre nos rins, local de especial indução da falcização por conta do
ambiente hipertônico que induz a desidratação das hemácias (hemácia desidratada
é igual à HbS polimerizada). Mas o evento renal mais comum é a isostenúria, que
é a perda da capacidade de concentração de urina secundária à necrose tubular e
com isso o túbulo coletor reabsorve menos água mesmo com aumento da secreção de
ADH. A isquemia de parte dos glomérulos induz ao aumento compensatório de
outros, e resulta em glomeruloesclerose, ocasionando insufuciência renal
crônica que pode evoluir para perda renal total, sendo essa uma das principais
causas de morte por anemia falciforme.
As principais
complicações hepáticas são a colelitíase por cristais de bilirrubinato de
cálcio, eventos oclusivos secundários e hepatites virais. Quando a hemólise
ocorre em grande quantidade de hemácias a bilirrubina vai até o fígado para ser
conjugada, onde pode formar cristais de bilirrubinato de cálcio. O cálculo
formado pode migrar para o ducto colédoco e causar icterícia colestásica. Como
aqui também irão existir os fenômenos vasoclusivos, com o evoluir da doença
ocorrerá fibrose do parênquima.
SINTOMAS
Como já foi
dito a dor é o primeiro sintoma, sendo secundário aos eventos oclusivos. Duram de
quatro seis dias, mas podem também chegar a semanas e podem ser iniciadas por
infecções, condições de hipóxia, febre, acidose, desidratação e exposição ao
frio. Pode iniciar como dactilite ou síndrome mão-pé, que se caracteriza por
uma inflamação dos tecidos que revestem essas estruturas, ficando inchadas,
dolorosas e por vezes vermelhas e quentes.
São
considerados febre maior que 38°, desidratação, palidez, vômitos recorrentes,
aumento do volume articular, dor abdominal, eventos pulmonares agudos, sintomas
neurológicos, priaprismo e processos álgicos em geral
.
Ocorre também
a síndrome torácica aguda, sendo um infiltrado pulmonar que se manifesta com
dor e insuficiência respiratória, sendo por isso a causa mais comum de morte
secundária a anemia falciforme. O coração vai encontrar-se congesto e pelo alto
débito será possível ouvir a terceira bulha.
Perda de visão
também pode ocorrer devido aos microinfartos. É a retinopatia falcêmica, que
pode ser de dois tipos: não-proliferativa, sendo na realidade hemorragias,
dando uma cor salmão à esclera; e proliferativas, que é a evolução da primeira,
sendo marcada pelo crescimento de novos vasos que também permitem o
extravasamento de sangue e, assim como na retinopatia diabética, evoluem para
descolamento da retina.
DIAGNÓSTICO
Antes de tudo deve se orientar às mães que façam o teste do pezinho, pois esse é capaz de detectar tanto o traço falciforme, como a doença falciforme, além de informar como é o genótipo dos pais e estimar a probabilidade de que uma gestação futura origine um concepto realmente doente. Esses teste é realizado gratuitamente nas unidades básicas de saúde.
O hemograma vai indicar anemia normocítica e normocrômica. Caso o VCM esteja baixo, pode haver anemia ferropriva associada. O esfregaço vai indicar presença de drepanócitos, assim como hemácias em alvo, que também será indicado no hemograma. Mas é imperante saber que a ausência dessas duas formas de hemácias não exclui o diagnóstico. A presença de hemácias nucleadas é sinal de eritropeioese acelerada e tendência ao desvio para a esquerda. Leucocitose de 6.000 a 20.000 pode ser encontrado, assim como a trombocitose. Essa trombocitose pode ocorrer no hipoesplenismo, pois o baço normal é um reservatório de plaquetas, não o sendo na doença falciforme. O VHS, geralmente e paradoxalmente, é normal.
O hemograma vai indicar anemia normocítica e normocrômica. Caso o VCM esteja baixo, pode haver anemia ferropriva associada. O esfregaço vai indicar presença de drepanócitos, assim como hemácias em alvo, que também será indicado no hemograma. Mas é imperante saber que a ausência dessas duas formas de hemácias não exclui o diagnóstico. A presença de hemácias nucleadas é sinal de eritropeioese acelerada e tendência ao desvio para a esquerda. Leucocitose de 6.000 a 20.000 pode ser encontrado, assim como a trombocitose. Essa trombocitose pode ocorrer no hipoesplenismo, pois o baço normal é um reservatório de plaquetas, não o sendo na doença falciforme. O VHS, geralmente e paradoxalmente, é normal.
O teste do
afoiçamento pode ser requisitado, mas a confirmação mesmo é feita com a
eletroforese de hemoglobina, que revela o percentual de HbS e outros tipos de
hemoglobina.
Na suspeita de
síndrome torácica deve-se solicitar o raio-x de tórax, hemograma com contagem
de reticulócitos e hemocultura.
TRATAMENTO
Deve-se
começar com medidas preventivas, que é a atualização dos esquemas vacinais, com
ênfase na anti-pneumiocócica. A prescrição de penicilina via oral na dose de
125 mg duas vezes ao dia em crianças acima de dois ou três meses se mostrou ter
grande impacto. A dose deve ser dobrada aos três anos e deve continuar até os
cinco anos.
Ácido fólico
de 1 a 5 mg ao dia via oral deve ser prescrito. Nas crises de dor deve ser
feita hidratação maciça, associada a opiáceos como a morfina na dose de 0,1 a
0,15 mg/Kg de peso de 4/4 horas. Nesses quadros também está indicada a hemotransfusão,
que geralmente tem ótima resposta, apesar de temporária.
A dor pode ser
tratada em vários níveis. Se for branda o paciente pode ser tratado em casa,
tomando o cuidado de ingerir grande quantidade de líquidos, além de ser reavaliados
no dia seguinte. Deve-se também reduzir a ansiedade, transmitir a importância
do repouso relativo, evitar mudanças bruscas de temperatura, aquecer as
articulações doloridas e por fim um anti-inflamatório como a nimesulida. Se a
dor é intensa a hidratação deve ser parenteral com soro glicosado a 5%.
Nos casos
leves de dor também pode-se utilizar dipirona 4/4 horas com suspensão após 24
horas de ausência de dor. Se a dor é moderada adiciona-se o anti-inflamatório,
e se grave adiciona-se a codeína, como o Tylex. Nesses casos a codeína só poderá
ser retirada depois de 48 horas sem dor e o anti-inflamatório após 72 horas.
Nos casos de
dor intensa também pode ser utilizado oxigenoterapia caso a saturação de O2
esteja rebaixada. Para dessensibilizar a dor pode ser utilizado diazepam na
dose de 5 mg ao dia e amitriptilina 25 mg 12/12 horas.
Uma via
alterativa, mas de boa resposta é a hidroxiuréia, que induz o organismo a
produzir HbF. A dose é de 10 a 30 mg/Kg de peso ao dia, sendo justificado pelo
fato da HbF inibir a polimerização da HbS e com isso inibe também o
afoiçamento. Por último há o
transplante de medula, que tem sido eficaz somente para os casos mais severos,
com evolução, por exemplo para acidentes vasculares isquêmicos.
Prescrição do
paciente internado:
1- Hidratação
venosa com soro glicosado a 5% (quantidade a depender do peso e da condição do
paciente);
2- Dipirona
ev 01 ampola de 4/4 horas;
3- Diclofenaco
ev 1 ampola 8/8 horas;
4- Morfina
0,1 mg/Kg ev 4/4 horas;
5- Monitorar
saturação de O2.
Nos casos em que o paciente não pode fazer uso de morfina, deve ser
prescrito a metadona 0,1 a 0,2 mg/Kg/ dose IM ou SC 4/4 horas nos primeiros
momentos, depois 6/6 horas e depois 8/8 horas.
OBS: deve-se ter extremo cuidado na hidratação do paciente com a
síndrome torácica aguda, pois pode-se agravar a dispneia.
REFERÊNCIAS
Brasil. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Especializada. Manual de Condutas técnicas na doença falciforme. Ministério
da Saúde: Brasília, 2006. Disponível em> http://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/livros/pdf/06_0241_M.pdf
Goldman L, Ausiello
D. Cecil: Bases Patologicas das Doenças: Patologia.Tratado de Medicina Interna.
22ªEdição. Rio de Janeiro: elsevier, 2005.
COTRAN,
R.S; Kumar V; COLLINS, T. Robbins. Bases
Patológicas das Doenças: Patologia. ed. 7. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2005.
LOPES, Antônio Carlos. Tratado de Clínica Médica. 2. ed. São
Paulo: Rocca, 2011.